Análise diatópica e diacrônica do uso do artigo definido antes de antropônimos: Bahia e São Paulo nos séculos XIX e XX
Nov 30 2023
RESUMO
No português do Brasil, os nomes de pessoas podem ser utilizados sem a anteposição do artigo definido, como em “Ø Maria viajou”, ou com a presença desse determinante, como em “A Maria viajou”. Esse fenômeno variável distingue alguns dialetos do português brasileiro (Callou e Silva, 1997). Com base em Macedo-Costa (2016), é possível perceber que, na variedade baiana do século XIX, a presença do determinante era empregada numa proporção semelhante à do português europeu do século XVIII e não à do século XIX. Considerando que, nos dados de Callou e Silva (1997), São Paulo apresentou a maior proporção de emprego do determinante antes de antropônimos em comparação com as outras capitais que compõem o Projeto NURC, questiona-se se esse uso expressivo também ocorria nesse dialeto no século XIX, ou era semelhante aos dados da variedade baiana nesse mesmo período. Objetiva-se nesta pesquisa comparar a realização do artigo definido antes de nomes de pessoas entre as variedades baiana e paulista dos séculos XIX e XX a partir de uma amostra de 15 peças teatrais escritas por autores baianos e paulistas nascidos nos séculos XIX e XX. Os resultados obtidos a partir da plataforma R (R Core Team, 2023) sugerem haver diferenças dialetais e diacrônicas entre essas duas variedades quanto à referencialidade do antropônimo.
1 Introdução
A grande maioria dos trabalhados sobre a formação do português brasileiro (doravante PB) apresenta generalizações a partir de comparações dessa variedade2 com o português europeu (doravante PE). Raros, entretanto, são os estudos que contrastam historicamente os dialetos que constituem o PB. Essa ausência muitas vezes é atribuída à escassez de dados históricos que representam cada área dialetal e/ou à dificuldade de lidar com dados sintáticos manualmente. Com a criação do Corpus Tycho Brahe (Galves et al., 2017), contudo, esses problemas estão sendo amenizados, porque essa ferramenta eletrônica tem permitido que pesquisadores automatizem as buscas de dados linguísticos em contextos morfológicos e sintáticos específicos e os manipulem facilmente.
Com base em Brandão (1991), consideram-se sinônimos os termos “variedade”, “dialeto” e “falar” usados neste estudo.
Um dos trabalhos realizados a partir desse corpus é o de Macedo-Costa (2016) sobre o uso do artigo definido antes de nomes de pessoas (doravante antropônimos) e antes de possessivos em dados do PE do século XVI ao XX e da variedade baiana dos séculos XIX e XX, obtidos de jornais que circularam na cidade de Salvador. Os resultados de Macedo-Costa (2016) mostram que o emprego do determinante antes de antropônimos na Bahia do século XIX (4%) tem uma proporção semelhante ao visto no português europeu do século XVIII (6%) e não ao valor encontrado nessa variedade no século XIX (42%). Com os dados dessa autora, também é possível notar um aumento na utilização dessa variante na variedade baiana no século XX (19%).
No PB, o emprego do artigo definido precedendo antropônimos diferencia dialetos, conforme mostra a pesquisa de Callou e Silva (1997), feita a partir de uma amostra de fala de cinco capitais brasileiras que constituem o Projeto de Estudo da Norma Urbana Culta – NURC, a saber, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. De acordo com os dados de Callou e Silva (1997), observam-se distintas taxas de uso do artigo definido precedendo antropônimos sobretudo entre os estados do Nordeste e do Sudeste, de maneira que a frequência da presença do determinante antes de antropônimo é maior nos estados desta região em relação àquela.
Contrastando os resultados de Macedo-Costa (2016) com os de Callou e Silva (1997) sobre a variedade baiana no século XX, observa-se que há uma tendência ao aumento do emprego dessa variante da primeira para a segunda metade do século XX. Nos dados de Callou e Silva (1997) chama bastante atenção a elevada taxa de utilização dessa variante no dialeto paulista (87%) que, por sinal, é o lugar que apresentou a maior proporção entre as variedades analisadas. Com base nos resultados diacrônicos de Macedo-Costa (2016) e sincrônicos de Callou e Silva (1997) quanto à realização do determinante antes de antropônimos, questiona-se se a variedade paulista do século XIX apresenta taxas menores semelhantes aos da Bahia desse século, ou já havia elevada frequência como a notada por Callou e Silva (1997) no século XX. Desse modo, objetiva-se, nesse trabalho, comparar o uso dessa variante entre as variedades baiana e paulista dos séculos XIX e XX.
Os achados deste estudo contribuem para a Dialetologia Histórica do Português Brasileiro (Galves, 2018), cuja proposta busca compreender como a língua portuguesa se difundiu no território brasileiro. Este texto está assim dividido: na seção 2, faz-se uma revisão bibliográfica sobre o uso do artigo antes de antropônimos em algumas línguas, focalizando os padrões linguísticos encontrados em variedades do português brasileiro. Na seção 3, apresentam-se as características do corpus investigado e os procedimentos metodológicos utilizados. Em seguida, na seção 4, descrevem-se e analisam-se os resultados e, por fim, na seção 5, apresentam-se as considerações finais.
2 Pressupostos teóricos
2.1 O uso do artigo definido antes de antropônimos em diferentes línguas3
Agradeço ao Professor Me. Antônio Codina (Uefs) pelas discussões acerca da temática abordada neste artigo e aos Professores Dra. Telma Magalhães (Ufal) e Dr. Adeilson Sedrins (Ufape) pelas contribuições no exame de qualificação desta pesquisa.
Entre as línguas naturais, há aquelas que não empregam o artigo definido precedendo antropônimos, como o inglês (4-a)4 e o italiano (4-b), outras que o utilizam, como o grego (4-c) e o catalão (4-d), e outras línguas que têm um uso variável, como algumas variedades do espanhol (4-e) e do português brasileiro (4-f) (Ordóñez, 2022).
Todos os exemplos da seção 2 foram utilizados por Ordóñez (2022).
- Jhon
- Gianni
- o Giannis
- en Joan, la Maria
- Alberto, el Alberto
- Ø João, o João
Segundo Ordóñez (2022), a hipótese que consegue explicar essa discrepância sintática entre as línguas naturais é a de Longobardi (1994). Segundo este autor, do ponto de vista semântico, o nome próprio é intrinsecamente referenciado por haver um traslado (ver Longobardi, 1994) do Nome (N) para o Determinante (D) (5-a) e, por essa razão, algumas línguas dispensariam o artigo definido antes de antropônimos. Já em outras, Longobardi (1994) conjectura que não há esse traslado, por isso, há a necessidade de inserir o determinante como um artigo expletivo (5-b).
- Joana − [SD [D la] [SN [N Joana] ] ]
Ordóñez (2022), a partir de Longobardi (1994), observa o emprego do determinante antes de antropônimos no catalão, no espanhol padrão e popular e descreve algumas propriedades desse fenômeno sintático nessas línguas. De acordo com Ordóñez (2022), em catalão, usa-se o artigo antes de antropônimos com maior grau de familiaridade [+fam] em relação a [-fam] e, por causa disso, esse uso não necessariamente seria um expletivo como aventa Longobardi (1994), mas uma construção opcional. Segundo Ordóñez (2022), em (6-a), por exemplo, utiliza-se o artigo ‘en’ antes do substantivo próprio Noam Chomsky quando deseja se referir a uma pessoa de distinção, de notoriedade, neste caso, o artigo referencia Noam Chomsky, o precursor da Teoria Gerativista. Por outro lado, emprega-se o exemplo (6-b), quando se almeja reportar alguém que não tem destaque. Neste contexto então, Noam Chomsky seria uma pessoa comum.
- en Noam Chomsky → [+fam] [SD Art[SN SN] ]
- Noam Chomsky → [-fam] [SD SN]
Ainda segundo Ordóñez (2022), no espanhol padrão, a regra utilizada é sem o uso do artigo antes de antropônimos, como no exemplo (7-a). Contudo algumas exceções dessa variedade, assim como algumas aplicações do espanhol popular permitem inferir que a realização dessa variante está associada à referencialidade da pessoa. Ou seja, a tendência para esse uso está relacionada à notoriedade social dela, seja por causa da fama, seja por alguma característica física. Em (7-b), por exemplo, usa-se o artigo ‘la’ antes de Callas, porque Maria Callas foi uma cantora soprano famosa de meado do século XX, enquanto em (7-c), usa-se o artigo porque o nome é um apelido formado por um adjetivo ou um substantivo.
- Juan vs. *el Juan → [SD NP]
- la Callas → [SD Art [SN NP] ]
- el Negro, la Chata → [SD Art [SN NP] ]
No espanhol do Chile, a presença do artigo definido antes de antropônimos tende a ocorrer mais frequentemente diante de nomes femininos do que diante de nomes masculinos. Essa diferença aparente pode estar relacionada ao preconceito de gênero. Com base em uma amostra de 15 textos jornalísticos publicados nos jornais La Tercera, La Cuarta, Las Últimas Noticias, Emol.cl e La Nación, no período de 23 de abril a 20 de maio de 2018, Aliaga et al. (2020) analisaram 130 ocorrências da presença e da ausência do artigo antes de antropônimos e observaram que, dos 89 nomes masculinos, 4 (4,5%) foram precedidos pelo artigo definido e 85 (95,5%) foram escritos sem o determinante. Por outro lado, dos 41 nomes femininos, os autores encontraram 27 (65,9%) com o determinante e 14 (34,1%) deles sem o artigo definido.
No português do Brasil, ao que parece, o uso do artigo antes de antropônimos tem correlação com nomes cujo referente é familiar/íntimo do falante. Essa regra está descrita em gramáticas tradicionais e parece ter sido implementada na segunda metade do século XX. Em gramáticas publicadas no Brasil no século XIX, como a de Duarte (1829), a de Coruja (1835), a de Rabello (1872) e a de Ribeiro (1903) não constam regras para o uso do determinante antes de antropônimos. Há, apenas na gramática de Duarte (1829), a prescrição do uso do artigo antes de topônimos (nomes de lugares), como em “A Bahia”, e diante de patronímicos, como em “Os Alburquerques”.
Por outro lado, nos compêndios gramaticais produzidos no século XX, como nas gramáticas de Bechara (2005 [1961]), de Almeida (2009 [1964]) e de Cunha (1985 [1972]), encontram-se instruções para a realização dessa variante ora com tom reflexivo, ora com tom normativo. De acordo com esses gramáticos, usa-se o artigo definido antes de nomes de familiares, de pessoas íntimas, de pessoas com relações política, ou de apelidos. Apenas Bechara (2005 [1961]) descreve esse uso para antes de nomes de escritores, de pessoas célebres e afins.
Os contextos pragmáticos familiaridade e intimidade têm apresentado correlações significativas com o uso do artigo definido antes de antropônimos em dados de comunidade de fala, conforme revelam os dados de Callou e Silva (1997), Amaral (2003, 2007), Pereira (2017) e Oliveira (2021) apresentados na seção 2.2.
2.2 Diacronias e diatopias da realização do artigo definido antes de antropônimos em variedades do português
No português europeu, há registro do uso do artigo definido antes de antropônimos já no século XIV. Segundo Callou e Silva (1997), há uma ocorrência, nos Diálogos de São Gregório, do determinante antecedendo um antropônimo dissílabo exercendo a função de sujeito. De acordo com essas autoras, esse uso se difundiu na língua portuguesa ao longo do tempo, expandindo-se da posição argumental (sujeito e complemento) para posição não-argumental, como adjunto adverbial, por exemplo.
Tal difusão pode ser observada na pesquisa de Macedo-Costa (2016), realizada à luz da Teoria de Princípios e Parâmetros (Chomsky, 1986), sobre o uso dos determinantes definidos, especificamente o artigo diante de nomes próprios, de possessivos e de nomes inalienáveis. Esse estudo foi feito a partir de dois corpora, um formado por 16 textos (vários gêneros) do PE datados do século XVI ao XIX pertencentes ao Corpus Tycho Brahe (Galves et al., 2017) e outro constituído de artigos jornalísticos assinados que circularam na cidade de Salvador entre 1833-1850, 1898-1900 e 1945-1948 (Macedo-costa, 2016). Essa autora privilegiou o uso do artigo definido diante de antropônimos em relação a outros tipos de nomes próprios, como os topônimos, por exemplo. Precisamente quanto aos dados da ausência e da presença do artigo definido precedendo antropônimos no PE do século XVI ao XIX, obtiveram-se, a partir da soma dos dados das Tabelas 03 (p. 143), 06 (p. 149) e 11 (p. 158) desse estudo, as frequências absolutas e relativas apresentadas na Tabela 1.
Os dados diacrônicos de presença do determinante antes de antropônimos expostos na Tabela 1 permitem evidenciar o declínio do uso dessa variante no PE do século XVII (4%) em relação ao século XVI (24%), a manutenção dessa queda numa relativa constante até o século XVIII (6%) e o aumento de sua frequência no século XIX (42%). Esse último resultado é preponderante para entender como teria ocorrido o processo de implementação dessa variante no PB, considerando as relações sociais, políticas e econômicas entre Portugal e Brasil nesse período.
O uso do artigo antes de antropônimos parece ter sido implementado em pontos específicos desse país, talvez ainda no século XIX, e tenha se espalhado para outras regiões de forma descompassada. Essa hipótese é plausível porque, em dados dos séculos XX e XXI, algumas variedades do PB apresentam proporções de uso significativamente diferentes, cujos valores permitem estimar resultados de sincronias passadas.
Callou e Silva (1997) analisaram o uso do artigo definido diante antropônimos e de possessivos a partir dos dados do Nurc. Especificamente sobre a primeira variável, os resultados, alcançados com o auxílio do Varbrul, mostram que a realização do determinante antes de antropônimos tem correlação com a origem geográfica do falante, cujas cidades apresentaram percentuais e pesos relativos (P.R.) distintos. Os valores depreendidos de Callou e Silva (1997) permitem classificar as capitais do Nordeste: Recife com 17% de uso e P.R. de .20 e Salvador com 32% de realizações e P.R. de .30 como desfavorecedoras da presença do artigo definido antes de antropônimos; enquanto as capitais do Sudeste: Rio de Janeiro com 43% de uso e P.R. de .52 e São Paulo com 87% de realização e P.R. de .88, e do Sul, Porto Alegre com 79% de realizações e P.R. de .81, como favorecedoras dessa variante. Além desses dados, destaca-se, das correlações encontradas por Callou e Silva (1997, p. 21), que o artigo definido antes de antropônimo tende a ser usado quando o nome se refere a uma pessoa da intimidade do informante (P.R. .67), em relação a nomes públicos (P.R. . 23) e quando não há referência quanto ao grau de intimidade (P.R. .23).
As taxas de realização do artigo definido precedendo antropônimos não só têm ascendido em determinadas variedades ao longo do tempo, mas também se têm apresentado discrepantes entre cidades um mesmo estado. Em Recife, os dados coletados por Oliveira (2021), a partir de um corpus de fala de 12 recifenses, estratificados em sexo (masculino e feminino) e faixa etária (I, 18-35 anos e II, +35 anos), evidenciam o aumento de uso dessa variante na capital pernambucana neste século (36,4%) em comparação com os dados de Callou e Silva (1997) do século XX (17%). Em cidades do interior desse estado, observam-se valores menores que o encontrado na capital, sugerindo ser o início de aplicação dessa variante morfossintática. No estudo de Pereira (2017), feito com uma amostra de fala composta por 48 participantes, estratificada em sexo (masculino e feminino), escolaridade (Fundamental, Médio e Superior) e faixa etária (I, 6-17 anos; II, 18-35 anos; III, +35 anos) de duas cidades do interior pernambucano, Carnaíba e Serra Talhada, os resultados globais indicam que, nesta cidade, de 445 observações, 9% são de presença do artigo; enquanto naquela cidade, do total de 488 ocorrências, 15% são de uso dessa variante. Das correlações vistas por Pereira (2017, p. 131.135) e Oliveira (2021, p. 103), destaca-se a análise da variável Referência do antropônimo, cujo resultado mostra que o artigo definido tende a ser empregado antes de Nomes personagens, conforme sugerem os pesos relativos obtidos nos dados de Recife (P.R. .92), de Carnaíba (P.R. 78) e de Serra Talhada (P.R. 76), em comparação com nomes reais (P.R. .42; P.R. .41; P.R. .43, respectivamente).
Na Bahia, especificamente em Salvador, os resultados obtidos através da reorganização da Tabela 14 de Macedo-Costa (p. 166-167), indicam haver baixa frequência da presença do artigo diante de nomes de pessoas entre o final do século XVIII e a metade do século XIX (média de 5%) e o aumento de uso dessa variante do fim desse século até o início do século XX (19%), conforme a Tabela 2. Ao comparar esse valor com a taxa vista por Callou e Silva (1997), observa-se que, na segunda metade desse século, há o aumento para 32% em relação ao seu início.
Em variedades do interior desse estado, os resultados de Brito et al. (2019, 2021) indicam o uso categórico para a ausência do determinante antes de antropônimos. Brito et al. (2019), a partir de um corpus composto por 91 cartas pessoais produzidas por lavradores do semiárido baiano (Riachão do Jacuípe, Conceição do Coité e Ichu), investigaram a variação da ausência e presença do artigo definido antes de possessivos e de antropônimos (Santiago, 2012). Acerca desta variável, as autoras notaram que, do total de 464 observações, apenas sete ocorrências (1,5%) apresentaram o artigo definido. De acordo com Brito et al. (2019), quatro delas foram utilizadas pelo mesmo remetente que teria passado alguns anos em São Paulo, onde, segundo os dados de Callou e Silva (1997), a taxa do emprego do determinante antes de antropônimos é bastante alta. Numa análise mais refinada dos dados desse mesmo corpus, Brito et al. (2021) analisaram esse fenômeno somente com antropônimos exercendo a função de núcleo do sintagma nominal. Os resultados globais dessa pesquisa mostram que, de 275 ocorrências, todas foram realizadas sem o artigo.
Em cidades de Minas Gerais, têm-se notado diferenças nas taxas de realização do artigo definido diante de antropônimos. Amaral (2003; 2007) analisou a variação entre a ausência e a presença do artigo definido antes de antropônimos numa amostra de fala de 45 informantes, estratificados em duas faixas etárias (faixa 1, 18 a 30 anos; faixa 2, +50 anos) e dois níveis de escolaridade (analfabetos ou de escolaridade primária; formação secundária ou superior), residentes em três cidades de Minas Gerais: Campanha (7 informantes), Minas Novas (15) e Paracatu (23).
Os resultados globais desse estudo mostraram que, em Campanha, de 242 ocorrências dessa variável sociolinguística, 59 (24%) foram de ausência do artigo e 183 (76%) de presença. Em Minas Novas, viu-se que, do total de 233 dados, 144 (68%) foram de ausência e 89 (38%) de presença. Já em Paracatu, detectou-se que, de 164 dados, 86 (52%) foram de ausência e 78 (48%) dados de presença. Das variáveis linguísticas e sociais observadas, evidencia-se apenas a correlação dessa variável sociolinguística com a variável Intimidade, cujo resultado sugere diferentes padrões linguísticos entre as comunidades estudadas. Em Campanha, notou-se que o artigo definido antes de antropônimos tende a ser empregado diante de nomes do meio social (P.R. .58) e de nomes de pessoas públicas da região (P.R. .59) em comparação com nomes de pessoas famosas nacionalmente (P.R. 28). Em Minas Novas, constatou-se que a presença do artigo antes de antropônimos tende a ocorrer diante de nomes de pessoas públicas da região (P.R. .61) e de nomes de pessoas famosas nacionalmente (P.R. .62) em relação a nomes de pessoas do meio social (P.R. .42). Por outro lado, em Paracatu, essa variável linguística não se correlacionou com a variável dependente.
Os dados diacrônicos da realização do artigo definido antes de antropônimos em Recife e na Bahia permitem estimar que, à medida que o tempo passa, mais as variedades do português brasileiro tendem, embora em proporções diferentes, a empregar essa variante em relação a sincronias passadas.
3 Metodologia
3.1 Constituição da amostra
Com base em Araújo-Adriano e Corôa (2021) e Galves (2018), avaliou-se que os dados coletados de um único gênero textual poderiam evitar análises com interferências de aspectos inerentes aos gêneros, como ter uma escrita mais ou menos monitorada, por exemplo. Dessa maneira, para comparar a realização do artigo definido antes de antropônimos entre a variedade baiana e a paulista dos séculos XIX e XX, constituiu-se um corpus com 15 peças teatrais, sendo oito escritas por autores baianos, quatro nascidos no século XIX e quatro nascidos no século XX; e sete peças escritas por paulistas, quatro do século XIX e três do XX. A preferência por peças teatrais para a realização deste estudo decorre do seu aspecto dialógico, já que, nesse gênero textual, os discursos das personagens são diretos e as formas de falar remetem ao cotidiano no qual elas estão inseridas (ver Preti, 1999 e Berlinck; Barbosa; Marine, 2008).
O corpus utilizado nesta pesquisa consta de quatro peças teatrais previamente disponíveis no Corpus Tycho Brahe5 (Galves et al., 2017): O médico dos pobres, de Ângelo Dourado; Sangue limpo, de Paulo Eiró; Cordélia Brasil, de Antonio Bivar e Essa é nossa praia, de Márcio Meirelles; e 11 peças que serão transcritas, modernizadas e etiquetadas no eDictor (Paixão de Sousa; Kepler e Faria, 2014), uma ferramenta eletrônica utilizada para edição filológica e codificação linguística automática, para então serem incluídas no Corpus Tycho Brahe (Galves et al., 2017). As peças são as seguintes: Calabar: drama em versos, de Agrário de Menezes; Gonzaga ou a revolução de Minas, de Castro Alves; O grito da consciência, de Boccanera Júnior; A caipirinha, de Cesário Motta; Amador Bueno, de Varnhagen; O rei da vela, de Oswald de Andrade; Bai, bai, Pelô, de Marcio Meirelles; O pagador de promessas, de Dias Gomes; O Santo Inquérito, de Dias Gomes; Navalha na carne, de Plínio Marcos; Abre a janela e deixa entrar o ar puro e o sol da manhã, de Antonio Bivar. Dessa maneira, os dados utilizados neste estudo foram coletados em dois processos, o primeiro automaticamente a partir do Tycho Brahe e o segundo manualmente. No Quadro 1, explicitam-se os autores e as obras que compõem a amostra.
Agradeço à Professora Dra. Williane Corôa (UNEB) pelas orientações para o uso do Tycho Brahe.
A obra Calabar: drama em versos foi escrita por Agrário de Menezes (1834-1863), um poeta e dramaturgo soteropolitano, ocupante da cadeira 29 da Academia de Letras da Bahia. Ele contribuiu nos principais jornais da Bahia de sua época, como o Jornal da Bahia, Diário da Bahia, O Noticiador Católico e O Prisma, por exemplo. Agrário diplomou-se em Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade de Direito de Recife.
A peça Gonzaga ou a revolução de Minas, única peça de Castro Alves (1847–1871), um dos principais poetas do Romantismo brasileiro, foi encenada pela primeira vez em 1867, mas só publicada postumamente em 1875. Castro Alves nasceu em Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira (BA), mudou-se para Recife para ingressar na Faculdade de Direito do Recife. Tornou-se o poeta dos escravizados por descrever sobretudo as mazelas causadas pela escravidão. Suas principais obras são o poema “O Navio Negreiro” (1868) e Espumas Flutuantes (1870).
A obra O médico dos pobres foi escrita por Ângelo Dourado (1857–1905), um escritor e médico formado pela Faculdade de Medicina da Bahia. Após mudar-se para Bagé, no Rio Grande do Sul, envolveu-se em política, exercendo a função de presidente da junta municipal republicana. Além dessa obra, Ângelo escreveu As minas de ouro e O impaludismo no Rio Grande do Sul.
A peça O grito da consciência foi produzida por Boccanera Júnior (1863–1938), teatrólogo, jornalista, engenheiro. Trabalhou na construção da Estrada de Ferro Central da Bahia em Cachoeira (BA), onde também contribuía escrevendo para um jornal local. Além dessa peça, esse autor produziu entre outras obras A flor da alta sociedade (1896), O meio do mundo (1897) e Mirem-se neste espelho (1909).
As obras O pagador de promessas e O Santo Inquérito foram escritas por Dias Gomes (1922-1999), romancista, dramaturgo e membro da Academia Brasileira de Letras. Ingressou na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, mas não concluiu o curso. Dias Gomes teve destaque nacional especialmente por produzir telenovelas e por ser casado com a escritora Janete Clair.
As peças Essa é nossa praia e Bai, bai, Pelô foram produzidas por Márcio Meirelles (1954– ), um dramaturgo soteropolitano, criador do Bando de Teatro Olodum e Diretor do Teatro Vila Velha. Exerceu a função de Secretário de Cultura do estado da Bahia no período de 2007 a 2011. Sua obra Bai, bai, Pelô foi adaptada para o cinema sob a produção da Rede Globo de Televisão com o nome de Ó pai, ó!
Francisco Adolfo de Varnhagen (1816–1878), mais conhecido como Varnhagen, escritor da peça Amador Bueno, nasceu em Vila de Sorocaba (SP), foi um diplomata, militar e historiador brasileiro. Estudou inicialmente no Rio de Janeiro, em seguida em Lisboa onde cursou Matemáticas, Diplomática e Engenharia Militar. Escreveu Notícia do Brasil, cujas informações históricas levaram-no a localizar o túmulo de Pedro Álvares Cabral em Santarém.
A obra Sangue limpo foi escrita por Paulo Eiró (1836–1871), um poeta e dramaturgo que nasceu em Santo Amaro (SP). Era professor de uma escola pública de Ensino Fundamental, mas pediu afastamento dela para ingressar no curso de Direito na Faculdade São Francisco. Ele, porém, não concluiu a graduação por questões de saúde. Tentou o seminário, mas seu perfil questionador e libertário gerou conflitos com os padres que solicitaram a queima de suas poesias revolucionárias.
A caipirinha é uma peça teatral de Cesário Motta (1847-1897), um médico e político que nasceu em Porto Feliz (SP). Depois que a República foi proclamada, ele exerceu a função de deputado federal e passou a morar na cidade de São Paulo. Cesário Motta foi honrado postumamente como patrono da cadeira nº 10 da Academia Paulista de Letras.
O rei da vela é uma obra escrita por Oswald de Andrade (1890-1954), filho de uma família tradicional de classe alta de São Paulo, poeta, ensaísta, dramaturgo e escritor que teve destaque nacional, principalmente, por ser um dos artistas à frente da Semana de Arte Moderna, ocorrida em 1922 no Teatro Municipal de São Paulo. Oswald concluiu os estudos recebendo o título de bacharel em Humanidades. Trabalhou como jornalista e redator. Em 1911, fundou o jornal O Pirralho, tendo Amadeu Amaral como colaborador, além de outros nomes.
O texto teatral Navalha na carne foi produzido por Plínio Marcos (1935–1999), um escritor, dramaturgo, ator e jornalista brasileiro que nasceu em Santos (SP) e destacou-se por escrever peças no período do Regime Militar. Plínio não era adepto aos estudos, por isso ele apenas concluiu o ensino primário. Na década de 1980, ele colaborou nos jornais Última Hora, Diário da Noite, Folha de São Paulo, Revista Veja, por exemplo.
As obras Cordélia Brasil e Abre a janela e deixa entrar o ar puro o sol da manhã foram escritas por Antonio Bivar (1939–2020), um dramaturgo e escritor que nasceu em Ribeirão Preto (SP). Esse autor participou ativamente dos movimentos de contracultura da década de 1960, 1970 e início de 1980. Foi autor de várias peças, sendo Cordélia Brasil premiada com o Prêmio Molière de 1970. Antonio Bivar faleceu em 2020 vítima de Covid-19.
3.2 Procedimentos de análise
Utilizou-se como critério para a seleção das ocorrências apenas o de que os antropônimos não poderiam apresentar nenhum qualificador entre o determinante e o núcleo do sintagma nominal como os pronomes possessivos (9-a), porque seria outro caso de variação no PB; os adjetivos (9-b), os graus de parentesco (9-c), os títulos (9-d) e os pronomes de tratamento (9-e), porque, nesses contextos, a presença do artigo definido foi categórica. Descartaram-se as ocorrências das rubricas6, porque nessa parte desse gênero textual não houve variação, uma vez que todos os antropônimos foram empregados sem o artigo.
Parte do peça teatral na qual o autor/narrador descreve a cena e o comportamento das personagens.
- Não ouves a tua Helena? (A.D., O médico dos Pobres, 1876)7.A abreviação A.D. refere-se às iniciais do nome do dramaturgo “Ângelo Dourado”, seguido do nome da obra “O médico dos pobres” e o ano da publicação 1876.
- E o pobre Varella procurando a solidão para ali chorar cantando (A.D., O médico dos Pobres, 1876).
- Não era, porque a tia Onistalda tratava-o por senhor (P.E., Sangue Limpo, 1861).
- O Dr. Oliveira praticou ontem as seguintes operações (A.D., O médico dos Pobres, 1876).
- O Sr. Frederico tem ido lá na casa quase toda noite [...] (A.D., O médico dos Pobres, 1876).
Dentre os contextos linguísticos que favorecem o uso do artigo definido antes de antropônimos, analisou-se apenas a Referencialidade do nome, isto é, se os antropônimos possuem alguma referência ou não, aventando-se a hipótese de que, com base em Ordóñez (2022), os nomes com alguma referência (doravante [+referencial]) favorecem a uso do artigo e os nomes sem referência (doravante [-referencial]) desfavorecem-no. Para tanto, consideram-se os nomes simples, como em (10-a); e os nomes compostos (10-b) como antropônimos [-referencial] e os nomes acompanhados de sobrenome (10-c), apelidos (10-d), hipocorísticos8 (10-e) e nomes de personalidades (10-f) como antropônimos [+referencial], conforme a sistematização apresentada no Quadro 2.
Hipocorísticos são apelidos formados a partir da alteração morfológica dos nomes de registro civil como, por exemplo, a abreviação “Maju” derivada do nome “Maria Júlia”; o diminutivo “Paulinho” derivado de “Paulo”; o aumentativo “Faustão” derivado do nome “Fausto”; a duplicação da sílaba “Du” em “Dudu” derivado de “Eduardo” (ver Amaral; Seide, 2022).
- Vamos ver Calabar (A.M., Calabar: drama em verso, 1858).
- A Cordélia é ciclotímica, quem diria?!!! (A.B., Cordélia Brasil, 1967).
- Antônio Carlos sobretudo faz lembrar os Régulos [...] senhor (P.E., Sangue Limpo, 1861).
- A Neusa Sueli sabe como eu sou (P.M., Navalha na carne, 1967).
- André Ramalho só faltou uma promessa (V., Amador Bueno, 1847).
- Uma que não saía de lá era a Aracy de Almeida (A.B., Abre a Janela e Deixa Entrar o Ar Puro e o Sol da Manhã, 1968).
- Por que eu não ia no candomblé de Maria de Iansã? (D.G., O pagador de promessas, 1960).
- Assim que arrecebi o cobre no João da venda (C.M., A caipirinha, 1880).
- Quem será afinal Zé do Burro? (D.G., O pagador de promessas, 1960).
- O Totó é a minha diferença (O.A., O rei da vela, 1933).
- Oh! Freud é subversivo (O.A., O rei da vela, 1933).
- Só tem aquele disco do Pérez Prado9(A.B., Cordélia Brasil, 1967).Pérez Prado (1916-1989) foi um pianista e compositor cubano, reconhecido como o maior expoente do Mambo.
Os estudos em Linguística Histórica objetivam essencialmente analisar as mudanças ocorridas na língua ao longo do tempo. Para marcar a datação dos textos, muitos trabalhos, baseando-se no aporte teórico da Gramática Gerativa, escolhem o ano de nascimento dos autores, tendo em vista que, segundo essa teoria, a gramática do indivíduo é alicerçada por volta dos seis anos de idade. Araújo-Adriano e Corôa (2021) chamam atenção, porém, para o fato de que o ano da publicação da obra deva também ser ponderado num estudo diacrônico, porque algumas mudanças linguísticas podem estar entrelaçadas aos contextos de criação, principalmente, quanto à adaptação do texto ao público-alvo. Apesar dessa relevante sugestão, para cotejar o emprego do artigo definido antes de antropônimos entre a variedade baiana e paulista, utilizou-se apenas o ano de nascimento do autor para datar os períodos a fim de ter dados comparáveis com outros trabalhos que utilizaram esse mesmo critério, com o de Macedo-Costa (2016), por exemplo.
A escassez de ocorrências impede a aplicação de testes estatísticos multivariados para identificar correlações significativas do uso do artigo definido antes de antropônimos com preditores sociais e linguísticos. Portanto, este estudo é puramente descritivo. Por essa razão, após a coleta de dados, realizou-se uma análise estatística descritiva, incluindo a produção de tabelas de frequência e de proporção, assim como a construção de gráficos, conforme orientam Woods et al. (1986), Gries (2009), Levshina (2015) e Oushiro (2022). Essa análise foi feita na plataforma R (R Core Team, 2023), cujos resultados apresentam-se na seção 4.
4. Resultados
4.1 Descrição dos achados
No cômputo geral da amostra, obtiveram-se 475 dados de ausência e presença do artigo definido antes de antropônimos nos textos escritos por autores das variedades baiana e paulista dos séculos XIX e XX, sendo 321 (68%) de ausência e 154 (32%) de presença. Embora se perceba que a variante mais usual é a ausência do determinante, nota-se, a partir da Tabela 3, que cada variedade apresenta um padrão de uso diferente quanto ao emprego dessa variável.
De acordo com os valores expostos na Tabela 3, nos textos produzidos por autores da variedade baiana, encontraram-se 267 dados desse fenômeno, sendo 240 (90%) ocorrências de ausência e 27 (10%) de presença. Já nos textos produzidos na variedade paulista, detectaram-se 208 observações dessa variável, sendo 81 (39%) de ausência do determinante e 127 (61%) de presença. Ao comparar os dados globais dessas duas amostras, verifica-se que a presença do artigo definido antes de antropônimos tende a ser mais recorrente na variedade paulista (61%) do que na variedade baiana (10%). Diacronicamente, há diferença nas taxas de realização do artigo definido antes de antropônimos nas duas variedades entre os séculos XIX e XX, conforme os valores apresentados na Tabela 4.
Com base na Tabela 4, verifica-se que, no século XIX, o artigo precedendo antropônimos ocorreu em menor proporção nos textos dos autores baianos (4%), em comparação com os textos dos autores paulistas (46%). No século XX, os textos baianos apresentaram um percentual maior em relação ao século anterior (20%), mas numa proporção muito menor em comparação com a variedade paulista (86%). Galves et al. (2006) e Galves (2018) sugerem que os textos escritos no século XIX são reflexos da gramática do português do século XVIII. No entanto, parece que isso se aplica aos textos da variedade baiana, mas não aos da variedade paulista, pelo menos quanto à realização dessa variável. Na Figura 3, comparam-se as proporções calculadas a partir do total de observações detectadas por Macedo-Costa (2016) no corpus do português europeu moderno do Tycho Brahe e no corpus de jornais da Bahia com os valores encontrados na amostra das peças teatrais da variedade baiana e da paulista.
Com base nos dados de Macedo-Costa (2016), obtidos do Corpus Tycho Brahe, vê-se que, no português europeu moderno, há 6% do emprego do artigo definido antes de antropônimos no século XVIII e 42% no século XIX. Já no corpus de textos jornalísticos escritos por baianos entre os séculos XVIII e XX, depreende-se que há 6% dessa variante nos textos dos autores nascidos no final do século XVIII e início do XIX, 4% nos textos dos autores nascidos na segunda metade do século XIX e 19% nas produções de autores nascidos no final desse século e início do XX. Com essa comparação, verifica-se que os dados da amostra do presente estudo se parecem com os valores depreendidos da análise de Macedo-Costa (2016) nas produções jornalísticas da variedade baiana dos séculos XIX e XX, e ambos os resultados se assemelham à porcentagem de seus dados do português europeu moderno do século XVIII. Além disso, nota-se que o aumento da frequência de uso do determinante no português europeu do século XIX só é refletido no dialeto baiano tardiamente e timidamente no século XX. Por outro lado, os dados dos textos da variedade paulista do século XIX apresentam semelhança com o resultado do português europeu nesse mesmo período, mas, em cotejo com a variedade baiana, vê-se que a implementação do determinante precedendo antropônimos acontece de maneira acelerada. O processo de implementação em ambas as variedades é descompassado, conforme se observa na distribuição dos dados de acordo com o ano de nascimento dos autores apresentada na Figura 4.
Na Figura 4, há dois gráficos de linha com os valores percentuais da ausência (linha vermelha) e da presença (linha azul) do artigo diante de antropônimos segundo o ano de nascimento dos autores, de maneira que, no gráfico superior, expõem-se os dados dos autores baianos dos séculos XIX e XX e, no gráfico inferior, mostram-se os valores dos autores paulistas em ambos os séculos. No gráfico dos autores baianos, verifica-se que a ausência do artigo definido antes de antropônimos apresentou-se com o uso categórico no início do século XIX (1834) e, aproximadamente na segunda metade desse século, a presença do determinante começa a aparecer timidamente, tendo uma leve ascendência desse período até o século XX, quando se mantém estável, pelo menos até a década de 1950. Se se acrescentar a esses resultados o valor de 32% encontrado nos dados do Nurc por Callou e Silva (1997), constata-se que, próximo ao final do século XX, houve um aumento da realização dessa variante.
No gráfico dos autores paulistas, por seu turno, verifica-se que, já no início do século XIX, mais especificamente em 1816, há 12% de realização do artigo definido antes de antropônimos, havendo um aumento de 15% para 68% na metade desse século. Esse uso se mantém numa constante até o início do século XX, quando há um aumento para 93% e depois uma leve queda para 84%. Aditando-se a esses resultados o valor de 87% visto por Callou e Silva (1997), depreende-se que a realização dessa variante se mantém numa relativa constante até a década de 1970, quando os dados do Nurc foram levantados.
Na Tabela 5, apresentam-se as frequências absolutas e relativas da presença do artigo definido diante de antropônimos de acordo com o contexto linguístico investigado, cujos valores permitem confrontar amplamente os dados das variedades e das sincronias pesquisadas. A Tabela 5 está assim organizada: na primeira coluna, consta o contexto linguístico; na segunda, expõem-se as suas categorias; na terceira e na quarta colunas, há os dados do emprego do determinante pelos autores baianos do século XIX; na quinta e sexta colunas constam os dados dessa variante realizada pelos autores paulistas desse mesmo século; na sétima e oitava, apresentam-se os dados dos autores baianos do século XX; e, na nona e décima colunas, exibem-se os totais dos escritores paulistas do século XX.
Em forma de gráfico, retomam-se, a seguir, as proporções desse contexto linguístico com o objetivo de comparar as regras variáveis de aplicação do determinante antes de antropônimos entre a variedade baiana e a paulista dos séculos XIX e XX. Na Figura 5, contrastam-se as proporções de uso dessa variante segundo a Referencialidade do nome, se [+referencial] ou [-referencial].
Nos dois primeiros gráficos, da esquerda para a direita, vê-se que, no século XIX, os autores baianos e paulistas tenderam a usar, embora com proporções diferentes, o determinante antes de nomes [+referencial], 10% e 59% respectivamente, em relação aos nomes [-referencial], 4% e 42% nessa mesma ordem. No século XX, observa-se, a partir do terceiro e quarto gráficos, que a variedade baiana manteve a tendência do século XIX, mas com proporções maiores que os desse século, sendo 31% para nomes [+referencial] e 14% para nomes [-referencial]. Por outro lado, a variedade paulista apresentou comportamento contrário, tanto em relação aos dados da Bahia desse mesmo século, quanto aos de São Paulo do século XIX. Constata-se, com base nos valores do quarto gráfico, que os autores paulistas do século XX tenderam a empregar o artigo definido antes de nomes [-referencial] (89%), em comparação com os nomes [+referencial] (76%).
4.2 Análise dos achados
A diferença de padrões do emprego do determinante antes de nomes de pessoas entre as variedades baiana e paulista nos séculos XIX e XX não é um caso isolado em estudos realizados com esse mesmo corte diacrônico e dialetal do PB (ver Avelar, 2018 e Martins, 2018). Galves (2018) sugere duas possíveis interpretações para que essa discrepância dialetal tenha surgido. A primeira é a de que as inovações linguísticas teriam surgido das camadas populares do norte, aceitas pela imprensa local e possivelmente tenham chegado aos letrados do sul tardiamente. A segunda é a de que as pressões normativas para com os estados em torno do Rio de Janeiro, sede da Corte naquela época, eram maiores em relação aos estados mais ao norte.
Se se considerar alguns fatos políticos-históricos ocorridos no Brasil nas duas metades do século XIX, envolvendo especialmente alguns estados do Nordeste e do Sudeste, e relacionar aos resultados deste estudo, verifica-se que a segunda interpretação é a mais plausível para justificar a discrepância de aplicação das variantes da variável em foco. Tomam-se apenas os resultados da análise dialetal e diacrônica da ausência e da presença do determinante antes de antropônimos como ponto de partida para uma nova maneira de olhar essa interpretação, visto que, nos séculos XIX e XX, essa variável já apresentava proporções discrepantes, configurando uma diferença sintática entre os falares/escritas do norte e os falares/escritas do sul.
Faraco (2019, p. 127) afirma que o processo de unificação territorial e nacional aconteceu por volta da segunda metade do século XIX, depois de várias revoltas secessionistas em distintos pontos do Brasil. O autor, porém, não discute a possível relação dessas revoltas com os impactos linguísticos gerados a partir delas. Esse ponto da história parece ser um fator profícuo para entender mais acerca da constituição das áreas dialetais brasileiras, especialmente as variedades do Nordeste e do Sudeste. No bojo dessa análise, faz-se necessário recuar o tempo10 até a migração da Família Real portuguesa para o Brasil em 1808 por causa das guerras napoleônicas e perceber quais as principais mudanças sociais esse país teve.
Agradeço às professoras de História Ma. Isabelle Costa e Ma. Ludmila Barros pela consultoria em História do Brasil.
D. João VI teve uma forte participação na ampliação da educação e da cultura do Brasil no início do século XIX. Segundo Del Priore (2016), ele aumentou as escolas régias (escolas de Ensino Médio), criou na Bahia e no Rio de Janeiro a Faculdade de Medicina, ampliou a Academia Militar no Rio de Janeiro e fortaleceu as Escolas de Artilharia e Fortificações na Bahia e no Maranhão, fundou bibliotecas e a Imprensa Régia incumbida da impressão dos livros, periódicos e folhetins. Mais tarde, já sob o comando de D. Pedro I, houve a criação das Faculdades de Direito em Pernambuco e em São Paulo. Diga-se de passagem, todas essas mudanças sociais em ambos os governos ocorreram para atender aos grandes proprietários de terra e não as camadas populares. Logo, aparentemente, a Corte portuguesa proporcionou à elite das regiões Nordeste e Sudeste os mesmos insumos de letramento. Veja-se, por exemplo, que todos os autores do século XIX deste estudo, seja da Bahia, seja de São Paulo tinham nível universitário completo ou incompleto (ver a subseção 3.1). Ora, se houve essa equidade de acesso à cultura letrada para a elite de ambas as regiões, por que baianos de nível universitário do século XIX apresentavam diferenças em algumas regras sintáticas, como o uso do artigo diante de antropônimos, em relação a paulistas de nível superior nesse mesmo século, fazendo uso de um mesmo gênero textual? É pouco provável que camada letrada do Nordeste sendo a elite estivesse em isolamento total e/ou parcial das produções de escrita da nova capital do país e de outras partes do mundo, uma vez que o Brasil se expandia a todo vapor (ver Del Priore, 2016, p. 14).
Dessa maneira, a análise do contexto socio-histórico-político das áreas dialetais pode ser o primeiro passo para responder sobre o que teria ocorrido para que o Nordeste e o Sudeste tivessem escritas/falas com aspectos gramaticais diferentes venha à luz. De acordo com Del Priore (2016), as duas sedes da Coroa Portuguesa (Lisboa e Rio de Janeiro) estavam em crise com a derrota de Napoleão, de maneira que as consequências da Revolução Liberal do Porto exigiram o retorno imediato de D. João VI à metrópole. Pouco tempo depois que D. Pedro I assumiu o lugar de seu pai D. João VI, a metrópole também exigiu o retorno dele. Tendo negado o pedido e a metrópole reduzido o Rio de Janeiro à província, D. Pedro I rompeu com a pátria-mãe e se sagrou Imperador do Brasil, marcando o início do Primeiro Reinado (1822-1831).
A independência do país parecia ser um alento para os ideais de autonomia das regiões, contudo o império de D. Pedro I se configurou absolutista e fez com que muitos se manifestassem contra o comando do Rio de Janeiro. Esse cisma colocou alguns estados do Nordeste contra o grupo constitucionalista formado pela elite do Rio de Janeiro. Minas Gerais e São Paulo, gerando diversos conflitos dos quais destaca-se a Confederação do Equador (1824), movimento surgido em Pernambuco constituído de homens simples, fazendeiros e religiosos que teve o apoio da Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte. No Período Regencial (1831-1840), depois que D. Pedro I volta para Portugal e deixa D. Pedro II como regente, alguns estados do Nordeste se revoltaram contra o abandono do governo em forma de confrontos armados, eclodindo a Cabanada em Alagoas e Pernambuco, a Revolta dos Malês e a Sabinada na Bahia, a Balaiada no Maranhão.
Tempos depois, agora na segunda metade do século XIX e no Império de D. Pedro II, parte da população brasileira, mais especificamente a elite, temerosa de que o Segundo Reinado fosse ditatorial como o de D. Pedro I, acentuou ainda mais o antilusitanismo, o desejo era de liberdade e de construir uma identidade brasileira. Segundo Del Priore (2016, p. 19), nesse período “ser brasileiro passou a ser antítese de ser português”.
Esses fatos históricos sugerem que o Nordeste se manteve mais resistente ao governo lusitano no período imperial em comparação com as outras regiões. Tal resistência talvez tenha feito com que os autores baianos não só produzissem peças de cunho histórico-reflexivo-pedagógico difundindo o antilusitanismo, mas também mantivessem as características de uma gramática portuguesa precedente a implementada com a chegada da Família Real. O texto de Agrário de Menezes Calabar: um drama em versos publicado em 1858 encena a biografia de Domingos Fernandes Calabar, um personagem da história que teria traído os portugueses ao permitir que os holandeses adentrassem as capitanias de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. O texto de Agrário não só remete ao patriotismo, mas também guarda em sua escrita uma gramática com característica do século XVIII, uma vez que sua produção textual apresentou o uso categórico para a ausência do artigo diante de antropônimos. Castro Alves, em sua única peça teatral Gonzaga ou a Revolução de Minas, traz à baila o desejo de uma pátria livre inspirado na Inconfidência Mineira (1789). De igual modo a Agrário de Menezes, parece que Castro Alves não só utiliza o teatro para expressar e, quiçá, instigar a sociedade por anseio de liberdade. A intenção desse poeta aparenta ser apresentada na própria escrita para externar qual variedade do português ele prestigiaria, observa-se, por exemplo, que do total de 48 ocorrências de contextos de uso de determinantes, apenas duas foram realizadas com a presença do artigo definido.
A contrário da Bahia, São Paulo durante o período imperial teve boas relações políticas com o governo da capital. Aliás, é principalmente nesse período em que esse estado começa a ter destaque na economia nacional com as produções de café. A proximidade geográfica e as boas relações políticas com o governo imperial pode ter contribuído para que os autores paulistas aderissem aos aspectos de regras vernaculares recém-chegadas.
Sendo isso verdade, pode-se assumir que a diferença dialetal entre a Bahia e São Paulo quanto ao emprego do artigo definido antes de antropônimos pode ter se estabelecido de maneira consciente por “afeição” ou “aversão” à Corte portuguesa radicada no Rio de Janeiro, logo é possível conjecturar que tal diferença seja um caso de acomodação linguística. Na Teoria da Acomodação, Giles et al. (1973) analisam as mudanças comportamentais de indivíduos (modos de falar, olhar, gesticular e outros) durante as suas interações a curto ou longo prazo. Segundo os autores, as pessoas se acomodam umas às outras com propósitos bem específicos: (i) reduzir diferenças de diversas naturezas, de sotaque por exemplo, a fim de obter a aprovação de um sujeito ou de determinado grupo social, gerada pela convergência de comportamentos; ou (ii) esquivar-se de um indivíduo ou de um grupo de pessoas, com o intuito de buscar um distanciamento, ocasionada pela divergência comportamental.
Dessa maneira, é possível que o antilusitanismo fortemente marcado nos estados do Nordeste durante o império tenha gerado divergência para com as formas de falar da sede da Corte portuguesa no Brasil e, com isso, variantes proeminentes dela não tenham sido adquiridas pela camada nordestina letrada. Contrariamente, o fato da elite paulista, durante a maior parte do período imperial, ter tido boas relações econômicas e políticas com o Rio de Janeiro fez com que ela convergisse positivamente para com as formas de falar da Corte e, portanto, aderisse aos aspectos salientes dela.
5 Considerações finais
A partir da análise de 15 textos teatrais escritos por autores baianos e paulistas nascidos nos séculos XIX e XX, observa-se uma diferença dialetal e diacrônica quanto ao emprego do artigo definido precedendo nomes de pessoas entre as variedades baiana e paulista. Na amostra desta variedade, identificou-se, no século XIX, 46% da presença do artigo definido nesse contexto específico e 86% no século XX; enquanto naquela variedade, verificou-se 4% dessa variante no século XIX e 20% no século XX. É possível que esse contraste dialetal, sobretudo no século XIX, tenha sido influenciado pelo antilusitanismo acentuado no Brasil império, especialmente em alguns estados no Nordeste, como a Bahia, por exemplo.
Quanto à variável linguística observada, vê-se que a distinção dialetal acerca do uso dessa variável parece estar na referencialidade do nome. Enquanto nos dados da Bahia dos dois séculos, os nomes [+referencial] tenderam a ser precedidos pelo artigo definido; nos dados de São Paulo, apenas no século XIX esse contexto parece favorecer o emprego dessa variante, já que, no século XX, nota-se uma tendência ao favorecimento nos nomes [- referencial].
Para análises futuras, pretende-se ampliar o corpus aqui analisado a fim de testar, a partir de análises multivariadas, a correlação dessa variável dependente com contextos linguísticos e sociais já analisados em pesquisas sobre esse fenômeno. Além disso, tenciona-se investigar, nesse mesmo corpus, outros fenômenos sintáticos que parecem diferenciar a variedade baiana da variedade paulista, como, por exemplo, a realização do modo imperativo e a negação sentencial.
Appendices
RESUMO
1 Introdução
2 Pressupostos teóricos
2.1 O uso do artigo definido antes de antropônimos em diferentes línguas3
Agradeço ao Professor Me. Antônio Codina (Uefs) pelas discussões acerca da temática abordada neste artigo e aos Professores Dra. Telma Magalhães (Ufal) e Dr. Adeilson Sedrins (Ufape) pelas contribuições no exame de qualificação desta pesquisa.
2.2 Diacronias e diatopias da realização do artigo definido antes de antropônimos em variedades do português
3 Metodologia
3.1 Constituição da amostra
3.2 Procedimentos de análise
4. Resultados
4.1 Descrição dos achados
4.2 Análise dos achados
5 Considerações finais
Appendices