Dossiê: Poéticas do envolvimento - volume 7, número 1 (2026)

Dossiê: Poéticas do envolvimento

volume 7, número 1 (2026)

No livro "A terra dá, a terra quer", Antônio Bispo dos Santos constrói uma crítica profunda ao mundo contemporâneo a partir de uma perspectiva contracolonial e quilombola. Ele denuncia o colonialismo como uma força que desestrutura modos de vida orgânicos, impondo lógicas de exploração, acumulação e desconexão com a natureza. Através da criação de novos conceitos como “cosmofobia”, o autor expõe o projeto de sociedade de origem eurocristã e monoteísta como promoção da artificialização da vida, da mercantilização dos saberes, da padronização cultural e da destruição ambiental. Contra essa tendência dominadora, marcada pelas ideias de progresso e desenvolvimento, o autor chama atenção para a importância da palavra “envolvimento”.

Vamos pegar as palavras do inimigo que estão potentes e vamos enfraquecê-las. E vamos pegar as nossas palavras que estão enfraquecidas e vamos potencializá-las. Por exemplo, se o inimigo adora dizer desenvolvimento, nós vamos dizer que o desenvolvimento desconecta, que o desenvolvimento é uma variante da cosmofobia. Vamos dizer que a cosmofobia é um vírus pandêmico e botar para ferrar com a palavra desenvolvimento. Porque a palavra boa é envolvimento (BISPO, 2023, p. 3; p.27).

A palavra Antropoceno, criada nos anos 1980 pelo biólogo norte-americano Eugene Stoermer e popularizada na década de 2000 por Paul Crutzen, busca identificar a época geológica atual, na qual o planeta encontra-se fundamentalmente transformado pelas ações humanas. Este termo carrega a consciência de uma profunda desconexão entre os humanos e o seu meio. Podemos dizer que os movimentos que culminam no Antropoceno são próprios do colonialismo cosmofóbico, pois “chegam subjugando, atacando, destruindo” (BISPO, 2023, p.62), impondo a ideia de “desenvolvimento em espaços onde o povo vive do envolvimento”, de modo que “o envolvimento é atrofiado, inviabilizado e enfraquecido” (op. cit. p.63).

Quando somos constantemente convocados a acreditar que “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, torna-se urgente investir em táticas de elaboração de outros modos de pensar e criar relações com a realidade. Nesse sentido, Donna Haraway afirma que devemos olhar esse momento de urgência para além dos “mitos autoindulgentes e autorrealizáveis do Apocalipse” que orientam os projetos de modernização e colonização. “Importa quais pensamentos pensam pensamentos. Importa quais conhecimentos conhecem conhecimentos. Importa quais mundos mundificam mundos. Importa quais estórias contam estórias” (HARAWAY, 2023, p.66).

Em contraposição às estórias orientadoras dos modos de vida que produzem o Antropoceno, impregnadas por mitos “celestes” e “heroicos”, Haraway alerta que a formação do mundo, o que ela chama de “mundificação”, não é apenas produzida pela agência humana, mas que, desde o início, o planeta foi formado por um complexo campo de envolvimento entre diferentes seres e substâncias.

Partindo dessas reflexões introdutórias, o objetivo deste dossiê é pensar as potências do envolvimento em um cosmo de relações múltiplas, uma “poética do envolvimento”, cosmoenvolvimento. De que formas diversas a arte pode ser praticada e pensada como criação de conexões com os espaços habitados por nós e com os outros seres (animais, máquinas, entidades espirituais, entre outros) que nos acompanham?

As “poéticas do envolvimento” que estamos esboçando aqui devem compreender a tecnodiversidade (HUI, 2020) dos modos de produção de imagem e escrita em sua relação com a experiência concreta da realidade: não como próteses de exteriorização, alienação e afastamento, mas como possíveis agentes de aproximação e criação de alianças.  Além de proposições de experiências a serem vivenciadas por um determinado público, buscamos compreender um tipo de prática artística que funciona em si como uma forma de criação de conexão com a realidade. A experiência expositiva é considerada como apenas uma das dimensões das “poéticas do envolvimento”, mas não a principal. A prática artística, assim, será reconhecida como um modo de habitar e de criar novas relações, um meio de existir na realidade mesmo.

Assim, desejamos publicar neste dossiê artigos e experimentações em arte que suscitem reflexões para dialogar e colaborar com a conceituação do que podemos considerar formas de “poética do envolvimento”, sem necessariamente ilustrá-la ou abordá-la diretamente. Apresentamos a seguir alguns dos temas que pretendemos colocar em relação nesta publicação:

- A prática artística como forma de envolvimento com o corpo.

- A prática artística como forma de envolvimento com outros seres.

- A prática artística como forma de envolvimento com espaços e lugares.

- A práticas artística como forma de envolvimento com as tecnicidades.

As colaborações podem ser submetidas até o dia 28 de fevereiro de 2026 para as seções artigos, resenhas, ensaios, entrevistas e traduções, com 25.000 a 35.000 caracteres, além de autorias e curadorias. O dossiê será publicado no primeiro semestre de 2026.

O template e as orientações para autores se encontram no website da revista Estado da Arte: http://www.seer.ufu.br/index.php/revistaestadodaarte/index.

 

Prof. Dr. Eduardo Montelli

Artista Visual e Professor Visitante no IARTE/UFU

Editor e organizador do dossiê

 

REFERÊNCIAS

HARAWAY, Donna. Ficar com o problema: fazer parentes do Chthluceno; traduzido por Ana Luiza Braga. São Paulo : n-1 edições, 2023

BISPO, Antônio dos Santos. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu Editora/PISEAGRAMA, 2023.

HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020.