Chamada para a submissão de trabalhos para o Volume 37 - nº 2
Espaço rural, populações tradicionais e políticas de Estado
(séculos XIX-XXI)
Profa. Dra. Carolina da Cunha Rocha (ENAP)
Prof. M.Sc. Benedito Emílio da Silva Ribeiro (UFPA/Campus Bragança)
Profa. Dra. Adriana Mendonça Cunha (Fiocruz)
Mudanças tecnocientíficas ocorridas desde o século XVIII estabeleceram, no mundo Ocidental, uma estreita vinculação entre ciência e política. Conforme afirmava Pierre Bourdieu, na obra Os usos sociais das ciências, o monopólio da autoridade científica era inseparavelmente definido enquanto capacidade e poder social. No século XIX, isso tem profundo impacto em dinâmicas socioeconômicas espelhadas nas teorias do darwinismo social e nas perspectivas de modernização nas nações ocidentais, sobretudo as latino-americanas, que projetaram estruturas de colonialismo interno para grandes extensões do mundo rural que eram taxadas como “espaços vazios” e/ou “sertões”. Com as Grandes Guerras mundiais, essas transformações não só aproximaram ciência e Estado como difundiram a crença de que seria possível, através de métodos científicos, reajustar os espaços político, natural e (sobretudo) social, submetendo homens e mulheres aos governos nacionais. Em meio a isso, perspectivas de desenvolvimento nacional e crescimento econômico em muitos países ocidentais ao longo do século XX apoiavam-se numa série de políticas e conhecimentos considerados aptos a melhorar os “defeitos” da natureza, transformar a agricultura tradicional, corrigir as falhas da sociedade e consertar a economia nacional, integrando o espaço rural a essas dinâmicas.
Desde meados do Oitocentos, perspectivas voltadas à modernização da agricultura, do mundo rural e de seus sujeitos atuantes (trabalhadores e agregados), eram pautas importantes em diversos países da América Latina como estratégia para consolidação do Estado nacional. A apropriação de novas terras, o desenvolvimento de culturas de exportação e a reorganização dos mundos do trabalho (entre trabalhadores livres e escravizados) foi muito importante nesse contexto para implantação de um modo de produção capitalista fortemente focado no setor primário de commodities agroextrativas nos países latino-americanas. Assim, no horizonte do pós-abolição no mundo atlântico, “superado” o problema da escravidão, houve uma ampliação das perspetivas que ligavam o Estado, a ciência e a economia rural como condutor de modernidade no interior dessas nações. Inaugurava-se outro contexto a partir do “trabalho livre” no campo.
No Brasil, por exemplo, tais ideais ganharam destaque com a Primeira República (1889-1930), cujas elites políticas, guiadas pelo Positivismo, nutriram o desejo de construção de uma ética de trabalho apta a regenerar e disciplinar homens e mulheres considerados inferiores, identificados como personagens não produtivos: o trabalhador analfabeto, o caboclo enfermo, o imigrante pobre, o pequeno agricultor sem instrução técnica, o “selvícola” etc. Essas ideologias seriam readaptadas no período nacional-desenvolvimentista (1930-1960), especialmente durante o Regime Vargas, com a defesa de instrução para trabalhadores rurais, com base em mecanismos científicos, para que eles passassem a ser identificados com a figura do “agricultor progressista”, como discutido por Regina Horta Duarte. Ao mesmo tempo, os povos indígenas foram incluídos nessa lógica, uma vez que a ideia de assistência e nacionalização, implantada pelas agências governamentais desse período, a exemplo do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), perpassava um processo pedagógico e de redefinição de territorialidades que transformariam os “selvícolas” em trabalhadores nacionais rurais. Ideologias que continuam em voga até hoje.
Assim, em várias políticas estatais nacionais, nota-se uma forte crença na ciência e na tecnologia como redentoras da pobreza e da herança cultural mestiça do Brasil, bem como de outras nações latino-americanas, vistas como desviantes do progresso nacional. Por isso, havia o desejo de branquear o campo, e por extensão a própria nação, impulsionando ideias higienistas e eugenistas que estimulavam a imigração europeia (alemã e italiana, principalmente), tanto para se evitar novas complicações étnicas quanto para tornar a produção agrícola mais eficaz. Ou seja, os conceitos de passado e atraso eram associados aos indivíduos negros, indígenas e “mestiços”, os quais precisariam ser reformados para se criar um novo tipo de cidadão apto a fazer parte da modernidade nacional (e universal), ao passo que as ideias de progresso e futuro eram associadas aos cidadãos brancos e europeus.
Em vista disso, a proposta deste dossiê temático visa agregar estudos sobre o espaço rural brasileiro e latinoamericano, na sua diversidade regional e de temporalidades, e as relações e projeções do Estado-nação sobre esse espaço e suas gentes, abrangendo pesquisas que dialoguem com diferentes disciplinas: História, Antropologia, Sociologia, Educação, Direito, Economia e outros campos das Humanidades. Serão bem-vindos trabalhos que tratem das diferentes fontes históricas para compreensão do mundo rural e de seus sujeitos entre os séculos XIX e XXI; das questões centrais relacionados às populações tradicionais e seu modus vivendi no campo/floresta/sertão, como: territórios e territorialidades, conflitos e tensões socioambientais, redes de relação e dinâmicas políticas locais, modos de produção tradicional, práticas culturais e sociabilidades; e dos debates e problemas ligados ao papel do Estado – através de suas agências, atores, políticas e redes científicas – no trato de povos indígenas, comunidades negras rurais e quilombolas, rurícolas, seringueiros, castanheiros, ribeirinhos, caboclos e outros grupos ligados às ruralidades no Brasil e demais países da América Latina.
O prazo limite para a submissão de trabalhos para esse volume é 18 de Outubro de 2024.