“Lá vêm dois irmãozinhos de 762”: música funk, cenas e sonoridades do Rio de Janeiro na década de 1990

Autores

  • João Augusto Neves

DOI:

https://doi.org/10.14393/ArtC-V20n36-2018-1-05

Resumo

Dentre os diferentes compassos da partitura política e econômica composta durante o processo de redemocratização no Brasil na década de 1990, alguns deles foram rimados e ritmados pela música funk. Uma escuta cuidadosa das canções desse gênero musical, embalado nos morros cariocas, pode nos revelar as sensibilidades daqueles(as) que se encontravam à margem do receituário neoliberal adotado no país. Nesse sentido, proponho desenredar alguns fi os da canção “Rap das armas”, a qual circulou entre diferentes vozes da cena e se consagrou, então, como a principal produção do funk feito no Brasil. Perceberemos, a partir dessa análise, os sentimentos que envolveram as performances de funk preocupadas em narrar as guerras particulares das regiões empobrecidas do Rio de Janeiro. Fica explícito, a cada batida ouvida, como esse gênero vocaliza experiências traumáticas sofridas na última década do século XX naquela cidade.

Palavras-chave: funk; neoliberalismo; guerras particulares.

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Biografia do Autor

João Augusto Neves

Doutorando em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor da Escola Técnica Estadual Pedro Ferreira Alves (Mogi Mirim/SP). Bolsista da Fapesp.

Referências

Notícias de uma guerra particular.

Direção: João Moreira Salles

e Kátia Lund. Rio de Janeiro:

Vídeo Filmes, 1999.

A performance, como veremos,

é uma recomposição, registrada

pelo documentaristas, da canção

pelos MCs Cidinho e Doca. A

alusão a algumas siglas, apelidos

e armas anunciados nessa

versão serão desenvolvidos ao

longo do artigo. Por ora basta

saber que Bope é a abreviação

do Batalhão de Operações

Policiais Especiais (BOPE),

DRE refere-se à Delegacia de

Repressão a Entorpecentes,

PM signifi ca Polícia Militar e

alemão é a denominação atribuída

ao oponente imediato

durante um confl ito, enquanto

AR-15, 12 e AR-16 são armas de

alto calibre.

PALOMBINI, Carlos. Como

torna-se difícil de matar: volt

mix, tamborzão, beatbox. Simpósio

de Pesquisadores de

Funk Carioca, 2, 2015, Rio de

Janeiro. Disponível em

www.researchgate.net/publication/

_Como_tornar-

se_difi cil_de_matar_Volt_

Mix_Tamborzao_Beatbox>

e Leonardo), Mc Júnior e Leonardo

(com participação do DJ

Marlboro). LP De baile em baile,

Sony, 1995.

O modo como se conectavam

os primeiros bailes black no

Rio de Janeiro nas décadas de

com a música soul e funk

americana e como eram organizadas

as festas nesse período

é explicitado no trabalho etnográfico

de Hermano Vianna.

Ver esp. VIANNA, Hermano.

As equipes, os discos, os DJs.

In: O mundo funk carioca. Rio de

Janeiro: Zahar,1988.

canção está entre os primeiros

funks a fazerem menção a armas

com alto calibre e a evidenciarem

o poder armamentista

presente nas favelas do Rio de

Janeiro.

Idem.

Organização criada no ano

em 1979 na prisão Cândido

Mendes. Durante as décadas de

e 2000 articulou e controlou

parte dos principais fl uxos

do comércio varejista de entorpecentes

no Rio de Janeiro. A

despeito de certos preconceitos

e posicionamentos ideológicos

questionáveis, a investigação

jornalística de Carlos Amorim

sobre a organização expõe

alguns fatos interessantes para

se pensar o contexto da atuação

do CV. Ver AMORIM, Carlos.

Comando Vermelho: história secreta

do crime organizado. Rio

de Janeiro: Record, 1993.

HELENA, Letícia. Rap exalta

lema do Comando Vermelho.

O Globo, Rio de Janeiro, 22 set.

, p. 11.

Apud ESSINGER, Sílvio. Batidão:

uma história do funk. Rio

de Janeiro: Record, 2005, p. 237.

ZALUAR, Alba. Democratização

inacabada: fracasso

da segurança pública. Estudos

Avançados, v. 21 (61), 2007, p. 43.

Idem.

Em síntese o projeto implantado

no Brasil, como em

distintas regiões do globo, pressupunha

e a liberdade da iniciativa empresarial,

rejeitando de modo

agressivo, porém genérico e

vago, a intervenção do Estado

na economia

Armando. Política neoliberal e

sindicalismo no Brasil. São Paulo:

Xamã, 1999, p. 23.

WACQUANT, Löic. As duas

faces do gueto. São Paulo: Boitempo,

, p. 94.

Ambos os episódios aconteceram

em 1993. A chacina da

Candelária foi um massacre

em que se registraram oito

mortes de jovens moradores

de ruas por polícias militares.

A chacina de Vigário Geral, por

sua vez, redundou na morte

de moradores dessa favela na

Zona Norte do Rio por um

grupo de extermínio do qual

participavam polícias militares.

O massacre da Casa de Detenção

de São Paulo, o Carandiru,

ocorreu em 1992 e deixou 111

mortos. O confl ito decorreu de

uma tentativa de contenção de

uma rebelião no presídio e se

converteu em um dos maiores

derramamentos de sangue

no país.

Idem.

PEREIRA, Íbis. Os lírios não

nascem da lei. In: KUCINSKI,

Bernado et al. Bala perdida: a

violência policial no Brasil e os

desafi os para sua superação.

São Paulo: Boitempo, 2015,

p. 43.

Minha compreensão sobre

processos de subjetivação se

apoia nas ideias sustentadas

por Guattari, para quem

dispositivos de produção de

subjetividade podem existir

em escala de megalópoles

assim como em escala dos

jogos de linguagem de um

indivíduo

íntimos dessa produção

rupturas de sentido autofundadoras

de existência

atualmente, talvez tenha mais a

nos ensinar do que as ciências

econômicas, as ciências humanas

e a psicanálise reunidas!

GUATTARI, Félix. Caosmose:

um novo paradigma estético.

São Paulo: Editora 34, 1992,

p. 33.

HERSCHMANN, Micael. Na

trilha do Brasil contemporâneo.

In: HERSCHMANN, Micael

(org.). Abalando os anos 90:

funk e hip-hop

violência e estilo musical. Rio

de Janeiro: Rocco, 1997, p. 73.

Entrevista com Leonardo

em ESSINGER, Sílvio, op. cit.,

p. 147.

Idem, p. 148.

CALADO, Carlos.

e

estourar em 90. Folha de S. Paulo,

São Paulo, 1 jan. 1990.

DIAS, Márcia Tosta. Os donos

da voz: indústria fonográfica

brasileira e mundialização da

cultura. 2. ed. São Paulo: Boitempo,

, p. 21.

A título de comparação, ver

as capas do consagrado grupo

nova-iorquino de hip-hop Run

DMC.

A autora frisa que as estratégias

dessa guerra estão

direcionadas aos

de poder, como os vendedores

de drogas do varejo das favelas

do Rio de Janeiro, demonizados

como

que a eles se assemelham, pela

cor da pele, pelas mesmas condições

de pobreza e marginalização,

pelo local de moradia

que, conforme o paradigma

bélico, não deve ser policiado

como os demais locais de moradia,

mas sim militarmente

Maria Lucia. Violência,

militarização e guerra às drogas.

In: KUCINSKI, Bernado et

al., op. cit., p. 36 e 37.

Para um aprofundamento

dessas questões, vale a pena a

leitura de VIANNA, Hermano.

O funk como símbolo de violência

carioca. In: VELHO, Gilberto

e ALVITO, Marcos (orgs.).

Cidadania e violência. Rio de

Janeiro: Editora UFRJ e Editora

FGV, 2000, MENDON

Cristo. Impactos do funk

na vida dos funkeiros: reconhecimento

na interação intragrupo;

estigmatização e discriminação na

relação extragrupo. Dissertação

(Mestrado em Ciências Sociais)

FACINA, Adriana.

bate, doutor

da pobreza. V Encontro

de Estudos Multidisciplinares

em Cultura (Enecult), Salvador,

A produção de um discurso

sobre o funkeiro como criminoso

e sua relação com os

arrastões nas praias do Rio

de Janeiro foram problematizadas

por Y

A conveniência da cultura: usos

da cultura na era global. 2. ed.

Belo Horizonte: Editora UFMG,

No capítulo A funkificação

do Rio, em particular,

o autor analisa como o poder

público e os jovens da periferia

usaram da cultura funk como

ferramenta para a construção

de políticas públicas nas favelas

cariocas.

LOPES, Adriana Carvalho.

Funk-se quem quiser: no batidão

negro da cidade carioca. Rio

de Janeiro: Bom Texto/Faperj,

, p. 50.

WACQUANT. Loïc, op. cit.,

p. 11.

O fenômeno da cultura funk

adquiriu grandes proporções

nas décadas de 1990 e 2000, a

ponto de se comparar artistas

do meio funk com os jogadores

de futebol que tinham a mesma

origem social e que conquistaram

fama e dinheiro. Para uma

refl exão mais pormenorizada

sobre o assunto, ver TROTTA,

Felipe e ROXO, Marco. O gosto

musical de Neymar: pagode,

funk, sertanejo e o imaginário

do popular bem-sucedido.

Ecopós, v. 17, n. 3, Rio de Janeiro,

Segundo jornais da época,

próspera indústria musical,

capaz de promover pelo menos

bailes por fi m de semana,

agora apresenta-se como um

fi lão ainda mais tentador. Uma

indústria que mobiliza um público

estimado em mais de 1,5

milhão de consumidores tem

nuances que não se expressam

só em manchetes policiais

PAIVA, Anabela. Abalou! Funk

se transforma em império comandado

por um ex-favelado e

um DJ precoce

Rio de Janeiro, 25 jun. 1995, p. 5.

MCs Cidinho e Doca. CD Eu

só quero ser feliz. Rio de Janeiro:

Spott light Records, 1995.

HERSCHMANN, Micael. O

funk e o hip-hop invadem a cena.

Rio de Janeiro: Editora UFRJ,

, p. 136 e 137.

Herschmann relata que,

numa ocasião,

Clube, dei de cara com um

pátio enorme (que devia comportar

aproximadamente 5 mil

pessoas), com quatro bares, banheiros,

pipoqueiros, sorveteiros.

Lá dentro do ginásio fi cava

o DJ com a muralha tradicional

de equipamentos de som e luz

Idem, ibidem, p. 134.

op. cit.

HERSCHMANN, Micael, op.

cit., p. 134.

Idem, ibidem, p. 136.

Entrevista com Cidinho em

ESSINGER, Sílvio, op. cit., p.

Y

cação do Rio. In: HERSCHMANN,

Micael (org.). Abalando

os anos 90, op. cit., p. 73.

LUDEMIR, Julio. 101 funks

que você tem que ouvir antes de

morrer. Rio de Janeiro: Areoplano,

, p. 122.

e Doca, s./ind., 1994.

No fi lme Tropa de Elite, tal

dança continua, e o funk serve

como fundo musical à força tática

dos justiceiros do comando

especial da PM carioca, o Bope.

Tropa de Elite 1, de 2007, e Tropa

de Elite 2, de 2010, dirigidos

por José Padilha, retratam a

vida de um comandante das

operações do Bope. Ambos os

longas se preocupam com os

confl itos entre as facções e as

forças policias nas favelas, mas

partindo de um outro ponto de

vista, o do Estado.

e Doca, op. cit.

GRAHAM , Stephen. Cidades

sitiadas: o novo urbanismo

militar. São Paulo: Boitempo,

, p. 41.

Conceito trabalhado por

GRAHAM. Ver idem, ibidem.

PALOMBINI, Carlos. Notas

sobre o funk. Disponível em

<http://www.proibidao.org/

notas-sobre-o-funk/>. Acesso

em 13 nov. 2014.

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Publicado

22-10-2018

Como Citar

Neves, J. A. (2018). “Lá vêm dois irmãozinhos de 762”: música funk, cenas e sonoridades do Rio de Janeiro na década de 1990. ArtCultura, 20(36). https://doi.org/10.14393/ArtC-V20n36-2018-1-05

Edição

Seção

Dossiê Fora do cânone: História & Música Popular