Nomes de cidades: identificação e memória
Abstract
RESUMO: Este estudo pretende demonstrar como a significação de nomes próprios de cidades é afetada por demandas sociais de pertencimento e identificação da população/ administração com as denominações locais. Partimos do ponto de vista de uma perspectiva relacional da linguagem, na Semântica da Enunciação (DIAS 2016, 2018a, 2018b), que assume que há razões enunciativas para as formas da língua se configurarem de tal modo. Como procedimento de análise, organizamos enunciados dispostos em redes enunciativas, tomadas como rede de sentidos, que podem demonstrar a heterogeneidade das relações históricas e sociais que afetam a enunciação desses nomes. Como resultado, mostramos que a significação dos nomes nas formações nominais é ativada por perspectivas de sentidos que se dispersam entre os domínios dos referenciais históricos e das pertinências enunciativas.
1 Introdução
Neste estudo, pretendemos observar, a partir da análise de nomes próprios de cidades, as dinâmicas das relações históricas e sociais que afetam a enunciação que constitui, oficialmente, unidades de sentido que nomeiam o território mato-grossense.
O recorte apresentado, neste estudo, apresenta o processo de nomeação da cidade de São José do Xingu-MT, em que observamos outras formações nominais designadoras como: Povoado do Bang Bang e São José do Bang Bang que, ao longo de sua fundação, se configuraram para essa localidade. Estes nomes se apresentam pela tensão histórica constitutiva da identificação social, que coloca um nome em língua inglesa (Bang-Bang) em disputa com um nome em língua indígena (Xingu).
Veremos que o movimento de identificação social que os enunciados contraem articulam sentidos para os nomes nos espaços enunciativos, em que cada nome presentifica pertinências enunciativas ancoradas em distintos suportes referenciais de sentido.
Como suporte teórico, direcionaremos as nossas análises pela perspectiva relacional do funcionamento da linguagem, a partir dos estudos de Dias (2016, 2018a, 2018b), na Semântica da Enunciação.
2 O nome próprio na Lexicologia e na Semântica da Enunciação: questões sobre sentido e referência
A motivação para este trabalho33 veio, a priori, pela observação de que os nomes indígenas têm um lugar de destaque nos estudos etimológicos, que buscam a origem e o significado dos nomes, contribuindo para um saber sobre a constituição morfológica e o seu processo de evolução; mas que, além desse conhecimento, torna-se necessário observar o funcionamento desses nomes na língua em uso.
Utiliza-se o negrito para dar destaque às expressões pertinentes em nosso estudo.
Utiliza-se o negrito para dar destaque às expressões pertinentes em nosso estudo.
Essa constatação foi reforçada a partir da leitura de um pronunciamento que encontramos na obra O tupi na Geografia Nacional, de Teodoro Sampaio (1987), que diz que o trabalho de etimologização das palavras de origem indígena desempenha um importante papel linguístico e social de fornecer, aos não falantes de línguas indígenas, os significados dos nomes dos lugares de nascimento que tomaram em sua formação nomes de origem indígena. Esse pronunciamento tem como cenário, o século XX, em que se constituíram leis de padronização geográfica do Brasil:
A administração pública, em dificuldade com a confusão oriunda do emprego dos mesmos nomes para mais de uma localidade, dentro ou fora de uma mesma circunscrição territorial, recorre ao vocabulário indígena como o mais seguro meio de as mais bem distinguir ou assinalar, voltando-se, muita vez, às denominações de outrora, como um recurso às necessidades de hoje. Ademais, sempre e mais digno de nós, ao empregarmos uma linguagem estranha para designar os lugares do nosso nascimento e da nossa habitação, entendermos-lhe o sentido verdadeiro ou o real significado. Só assim será menos bárbara, se me permitem a expressão, a geografia do nosso país. (idem, p. 185) [grifo nosso]
É interessante observar, nessa citação, que o trabalho de etimologização das palavras se coloca como utilitário para o conhecimento dos nomes decorrentes de uma linguagem estranha44, busca-se o sentido verdadeiro ou o real significado. A nossa colocação se dá de modo distinto, pois pela abordagem enunciativa, pretendemos dizer que na nomeação, a significação do nome pode funcionar, sobretudo, pelo distanciamento de sua etimologia, pelos sentidos contraídos na enunciação desses nomes, sendo que a constituição de suas formas também pode ser afetada por esses sentidos.
Canarana. Etimologia: Do tupi - Nome híbrido. Canna do latim refere-se ao caule de inúmeras plantas gramíneas, ex: cana-de-açúcar. O vocábulo “rana” é sufixo tupi (igual, semelhante, parecido). Etimologia dada por Antônio Houaiss e Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (FERREIRA, 2008, p. 56). Oficialização do nome: 16 de julho de 1962 - Lei Estadual n. 1715.
Canarana. Etimologia: Do tupi - Nome híbrido. Canna do latim refere-se ao caule de inúmeras plantas gramíneas, ex: cana-de-açúcar. O vocábulo “rana” é sufixo tupi (igual, semelhante, parecido). Etimologia dada por Antônio Houaiss e Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (FERREIRA, 2008, p. 56). Oficialização do nome: 16 de julho de 1962 - Lei Estadual n. 1715.
Vejamos um dizer sobre a criação do nome da cidade mato-grossense Canarana55:
Relato da fundação de Canarana, Pastor Norberto. Uma cruz na terra nova. In: FERREIRA, J. C; SILVA, J. M e. Cidades de Mato Grosso: origem e significado de seus nomes. Cuiabá, 1988. p. 43-44.
Relato da fundação de Canarana, Pastor Norberto. Uma cruz na terra nova. In: FERREIRA, J. C; SILVA, J. M e. Cidades de Mato Grosso: origem e significado de seus nomes. Cuiabá, 1988. p. 43-44.
[...] Pensei em nomes de grandes homens, mas eu não conhecia muito bem nossos heróis nacionais. [1.2] Nome de santo é que não seria. [1.3.] Então, pensei na flora amazônica e pedi que me fizesse imediatamente uma relação dos nomes de plantas típicas da região...gostei de nomes como buriti, açaí, etc. Mas, de repente, um me chamou atenção: Canarana: Que é isso? - é um famoso capim da Amazônia, aliás o mais famoso. Gostei do nome, pois lembrava Canaã, a Terra Prometida. Toda aquela aventura já tinha um nome: Projeto Canarana...” 66. [grifo nosso]
DICK, M. V. de P.do A. A estrutura do signo toponímico. Disponível em https://www.revistas.usp.br. Acesso em: 25 dez. 2020.
DICK, M. V. de P.do A. A estrutura do signo toponímico. Disponível em https://www.revistas.usp.br. Acesso em: 25 dez. 2020.
Nesse dizer, podemos observar que o nome “Canarana” não significa no processo de nomeação apenas por um processo descritivo do espaço (conter a planta canarana), mas por um processo que expõe um fundo designativo perspectivado na enunciação do colonizador (lembrava Canaã).
Através da observação do nome Canarana, enquanto formação nominal, podemos conceber que a significação dos nomes não são abstrações ou realidades imediatas para que se aponte algo no mundo (o referente canarana), pois há uma qualificação enunciativa do nome, que demonstra as razões enunciativas para a nomeação da cidade. Como vemos, a razão enunciativa que estabelece o nome Canarana advém de uma gradação de pertinências [1. a exclusão de nomes de personalidades e nomes de santos; 2. A perspectivação de um nome que faz parte da flora], contraídas na enunciação fundadora do local.
Podemos dizer que a qualificação enunciativa da forma “canarana” não se sustenta apenas pela estrutura do nome, que demonstra semelhança gráfica e fonética com Canaã, mas pelo confronto dos domínios de mobilização, em que as articulações de sentido demonstram as divisões sociais do espaço “é nesse espaço de diferença, de conflito, que se constitui a história” (DIAS, 2018, p. 20). Acrescentamos que constitui a história do nome.
A seguir, apresentaremos as perspectivas teóricas dos estudos toponímicos e dos estudos da Semântica da Enunciação, em que pretendemos assinalar a distinção entre uma abordagem lexical e a abordagem enunciativa de nomes próprios.
2.1 Os estudos toponímicos
A Toponímia é a área das Ciências Humanas que tem como objeto de estudo os nomes próprios de lugar e, em conjunto com a Antroponímia, estudo dos nomes próprios de pessoas, formam a grande área da Onomástica.
Herbele e Machado (2018, p. 71) apresentam a cronologia dos estudos toponímicos, que tiveram início na França, no final do século XIX, com August Longnon na École Pratique des Hautes-Études; no curso ministrado por ele tem-se a elaboração da obra Les noms de lieu de la France, publicada por seus alunos, postumamente, no ano de 1812; em 1922, Dauzat dá sequência aos estudos toponímicos, após a morte de Longnon, e organiza, em 1938, o I Congresso Internacional de Toponímia e Antroponímia, que contou com a participação de 20 países.
Na primeira metade do século XX, os estudos toponímicos iniciaram-se no Brasil seguindo uma tendência de pesquisas de caráter etimológico, em que os trabalhos eram voltados para o estudo dos topônimos de origem nas línguas indígenas brasileiras. Algumas publicações se tornaram grandes referências para estes estudos, tendo como destaque a obra O tupi na Geografia Nacional, de Teodoro Sampaio (1901), A toponímia Brasílica, de Armando Levy Cardoso (1961) e a Contribuição do Bororo à Toponímica Brasílica, de Carlos Drumond (1965).
Dick (1994) diz que a introdução dos estudos toponímicos, na Universidade de São Paulo (USP), teve influência dos estudos tupis, sobretudo, pela Toponímia não constituir um corpo disciplinar autônomo em sua origem, visto que, nessa época, a disciplina se configurava na cadeira de Etnografia e Língua Tupi, vinculada aos cursos de História e Geografia, mas
a reformulação dos cursos de Letras, no final da década de 60, trouxe, como consequência, o desdobramento do antigo conteúdo programático em duas disciplinas autônomas, hoje integrantes da área de Línguas Indígenas do Brasil, e alocadas no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, ou seja, Língua Tupi e Toponímia (curricularmente, compõem o núcleo da área Cultura Brasileira do CMF). Com isso, alargou-se o campo de trabalho natural, principalmente a partir de quando se fixou melhor a sua nomenclatura na estrutura curricular de Letras (1987). (idem, p. 435)
Com os estudos de Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick, precisamente, em sua tese de doutoramento intitulada A motivação toponímica. Princípios teóricos e modelos taxionômicos (1980), ocorre uma expansão do olhar para a diversidade toponímica de outras influências, como os topônimos de origem em línguas africanas e demais línguas estrangeiras. Esta pesquisadora se mantém, na atualidade, como uma das principais referências para a área, sobretudo, por ter estabelecido métodos e contribuído para que os estudos toponímicos fossem disseminados em todo país.
Para que a Toponímia se firmasse como disciplina autônoma foi preciso percorrer um longo caminho para a compreensão da complexidade que envolve a delimitação de seu campo de trabalho e a caracterização de seu objeto de pesquisa. Se por um lado a disciplina pode congregar as mais diferentes áreas do conhecimento, como a Antropologia, a Arqueologia, a Botânica, a Geografia, a História, a Linguística e Psicologia Social etc., por outro, não se pode perder de vista que “em sua feição intrínseca, a Toponímia deve ser considerada como um fato do sistema das línguas humanas” (DICK, 1990, p. 287).
Assim,
o uso particularizante do código de comunicação verbal, portanto, além de definir o campo conceitual das disciplinas, justifica o exame da nomenclatura geográfica em suas características internas (filiação linguística dos topónimos e respectiva pesquisa /etimológica) e externas ou semânticas (motivação toponímica)a abordagem do léxico toponímico adquire relevância ao propor que, ao se conhecer sobre o nome, também apreendemos aspectos culturais das sociedades, ou de determinados núcleos humano, pois os léxicos são responsáveis por nomear e exprimir o universo dessas sociedades77.
idem.
idem.
Dessa forma, os estudos toponímicos integram o campo da Linguística por meio da Lexicologia, e investigam o signo toponímico através do interesse pela motivação dos nomes próprios de lugares. A configuração conceitual do signo toponímico, que se constitui como o objeto de pesquisa da disciplina, pode distinguir-se, essencialmente, do signo linguístico, definido por Saussure (2006), pelo seu caráter arbitrário e convencional:
Muito embora seja o topónimo [sic], em sua estrutura, uma forma de língua, ou um significante, animado por uma substância de conteúdo, da mesma maneira que todo e qualquer outro elemento do código em questão, a funcionalidade de seu emprego adquire uma dimensão maior, marcando-o duplamente: o que era arbitrário, em termos de língua, transforma-se, no ato do batismo de um lugar, em essencialmente motivado, não sendo exagero afirmar ser essa uma das principais características do topónimo [sic]88. [grifo da autora]
Nessa propositura, os sentidos se tornam pertinentes por uma demanda da atualidade do dizer, ou seja, os referenciais históricos adquirem sentido na medida em que uma atualidade motivadora da formulação torna tais sentidos pertinentes.
Nessa propositura, os sentidos se tornam pertinentes por uma demanda da atualidade do dizer, ou seja, os referenciais históricos adquirem sentido na medida em que uma atualidade motivadora da formulação torna tais sentidos pertinentes.
Sendo assim, ao nome próprio, enquanto signo toponímico, é incorporada uma função referencial que incide sobre o ato de nomear o lugar. Através das análises dos registros, que permanecem em funcionamento nas línguas, pode-se chegar ao conhecimento da motivação para a nomeação, bem como do conhecimento sociocultural das regiões, em que o léxico pode preservar marcas da primitividade denominativa daquele lugar:
Portanto, os nomes próprios não apenas identificam, mas também significam. O que ocorre é que essa categoria de nomes ultrapassa os limites do sistema linguístico para direcionar-se ao extralinguístico e apesar de ser um signo referencial, ele não foge aos padrões conceituais que um símbolo linguístico deve possuir. No processo de criação de um topônimo, por exemplo, o denominador utiliza a dupla face de uma palavra: a forma e o conteúdo, pois elege entre as formas lexicais existentes em sua língua nativa àquela que possa interpretar o conteúdo − que é o próprio lugar − e no processo discursivo, ele identifica o conteúdo − a referência ao lugar − através da forma linguística. (ALMEIDA, 2012, p. 58). [grifo nosso]
Para Seabra (2006, p. 1955), o estudo da referência acaba por ser indissociável aos estudos onomásticos e ressalta que:
com uma literatura menos extensa nos estudos linguísticos, a Onomástica tem merecido a atenção de pesquisadores quando se põe em destaque a língua como fato social. As questões sobre referência, também, vem sendo objeto de estudo nessa área.
Para tanto, a autora propõe o estudo Referência e Onomástica (2006) que aponta, entre outras questões, a distinção entre as relações nome, sentido e referente, no universo da língua, e a relação entre nome e referente, na Onomástica, chegando à conclusão de que, nos casos dos nomes próprios de pessoas e nomes de lugares, a relação entre nome e referente pode ser direta sem, necessariamente, passar pelo funcionamento do sentido.
Assim, a questão do sentido do nome próprio fica à margem da relação nome/referente do signo toponímico, pois, nessa perspectiva, há uma compreensão de que os sentidos possam mudar com o tempo, ao passo que o nome, enquanto representante do referente, permanece estabilizado na língua.
Desse modo, o topônimo acaba por preservar em sua forma a relação com o próprio referente ao identificar, particularizar e /ou singularizar o nome genérico do acidente geográfico que denominou o lugar, “na maioria das vezes, o sucesso de uma referência ocorre quando o ouvinte consegue identificar o referente” (idem. p. 1956).
Por exemplo, quando os nomes dizem respeito aos aspectos físicos e naturais do lugar, ressalta-se que há um caráter mais transparente e identificável, visto que o sentido do referente pode estar mais acessível ao conhecimento “podemos citar, dentre outros, os topônimos Baixada, Vargem, Barro Branco, Água Suja, de significação clara, mesmo para quem não é da região a que eles fazem menção” (idem, p. 1958). [grifo da autora].
Dessa forma, compreende-se que os estudos toponímicos levam em consideração o vínculo representativo entre topônimo e lugar, preocupando-se com a função referencial e a obtenção mais “precisa” do significado do nome que o signo toponímico pode conter. Embora esta perspectiva também considere que um mesmo lugar possa receber outros nomes, pelo processo de renomeação, há um interesse em observar o processo de cristalização semântica que persiste como signo geográfico, preservando o referente.
2.2 Os estudos semântico-enunciativos
2.2.1 Semântica da Enunciação: uma disciplina do funcionamento da língua e da linguagem
No ano de 2018, o semanticista Eduardo Guimarães apresenta o livro Semântica, Enunciação e Sentido, em que revisita alguns trabalhos, estabelecendo ajustes e novas análises que contribuem para o aprimoramento da configuração do corpo teórico-metodológico proposto pela Semântica do Acontecimento (2002).
A questão que nos interessa nessa publicação encontra-se no capítulo 10 (p. 173), intitulado Nome Próprio, que é permeado pela reflexão da noção clássica da distinção entre nomes comuns e nomes próprios, em relação ao estabelecimento da referência. Para tanto, o autor desenvolve análises que demonstram como em um mesmo acontecimento um nome pode referir a objetos diferentes.
Vejamos a sondagem inicial que toma como análise o nome São Vicente, apresentado no texto Diário da Navegação da Armada que foi à Terra do Brasil em 1530 sob a Capitania-mor de Martim Affonso de Souza de Pero Lopes de Souza (1530-1532). O autor considera o Diário como “um acontecimento enunciativo da história da colonização do Brasil” (idem, p. 174), visto que este texto relata a saída dos portugueses de Lisboa para as “terras do Brasil”, referenciando a passagem pelo “cabo de Sam Vicente” em Portugal até o final da viagem na “ilha de Sam Vicente”, onde se cria a primeira vila do Brasil denominada Vila de São Vicente.
No relato do Diário, observa-se como um mesmo nome refere, distintamente, dois lugares em um mesmo texto “De saída isto coloca a questão de se considerar como um nome (São Vicente) funciona “unicamente” como nome de um lugar e no mesmo texto “unicamente” como nome de outro lugar” (GUIMARÃES, 2018, p. 175).
Como observamos nas palavras do autor, o nome São Vicente é observado pelo funcionamento que o tornou nome em 1. cabo de São Vicente, aqui o memorável religioso sobrepõe-se à história de um mártir que é predicado como santo e instituído como padroeiro de Lisboa. São Vicente significa nome do cabo pela designação do santo; e em 2. ilha de São Vicente, o nome do santo significa por um outro recorte do memorável, ou seja, o nome da ilha foi atribuído pela data de sua fundação ocorrida no mesmo dia em que se comemorava o santo São Vicente.
Desse modo, o que se observa é que os diferentes agenciamentos levam a memoráveis distintos, ou seja, “a referência à ilha de São Vicente se dá do lugar da Coroa e seu memorável é diretamente religioso (a nomeação do cabo por São Vicente não significa neste memorável)” (idem, p. 184).
Após as análises, o autor conclui que “um nome próprio pode não ser suficiente para fazer referência a um objeto único” (idem, p. 185), pois como pode ser observado no acontecimento de enunciação do Diário de Viagem, o nome próprio São Vicente significou de modos distintos no acontecimento que nomeou ambos os lugares.
Guimarães ressalta que, nesse texto, o nome São Vicente se referiu a estes lugares por expressões singulares definidas, nas quais os nomes próprios determinaram os nomes genéricos (cabo e ilha), pois, com essas análises, pode-se presumir que haja uma proximidade entre nomes próprios e nomes comuns, no que concerne à problemática da referência:
Assim a referência a objetos únicos não é o que define os nomes próprios. Mesmo que em certas condições, haja nomes próprios que podem sozinho fazer essa referência. E isto tem a ver com a relação do nome com o acontecimento em que o nome é atribuído a algo. (GUIMARÃES, 2018, p. 186)
O texto da citação pode se relacionar a uma afirmação feita pelo autor em outro momento “não há como falar da história de um nome sem que se fale da História em que o nome se dá como nome” (GUIMARÃES, 1992, p. 16). Ou seja, não há como falar da história de um nome, sem que o nome esteja relacionado a um acontecimento de linguagem, a textos específicos que possibilitem observar o seu funcionamento.
Na linha de pensamento de Guimarães, surge uma segunda perspectiva que se desenvolve a partir dos estudos de Luiz Francisco Dias, na qual os nomes são tomados como “fulcros de movimento de temporalização e orientação espacial” (DIAS, 2016, p. 47). Este autor considera que para haver significação, o nome precisa se presentificar na enunciação, por um movimento de reivindicação de pertinências (na atualidade do dizer) na relação com os referenciais históricos (recortes de memorável). Nessa abordagem, o interesse se volta para a observação da forma dos nomes concebida como formações nominais.
2.2.2 Formas linguísticas e relações linguísticas: em defesa da enunciação
Ao longo de sua trajetória de pesquisa, Luiz Francisco Dias tem defendido um novo olhar para o estudo da forma da língua, que não se reduz à compreensão da singularidade estrutural dos sintagmas. Ainda no início de seus estudos, no ano de 1983, a inquietude que lhe fora provocada diante do funcionamento do termo “então”, em um trecho de Quincas Borba, impulsionou o pesquisador a se aprofundar nas questões que, naquele momento, ainda lhe pareciam obscuras, como a de afirmar que ali funcionava uma articulação de sentidos “a qual não estava dada no texto” (DIAS, 2018a, p. 8).
As investigações do autor ganham consistência com a tese de doutoramento publicada no ano de 1996, no livro Os sentidos do Idioma Nacional: as bases enunciativas do nacionalismo linguístico. Ali, o autor já pode observar que existiam duas perspectivas que se colocavam diante da ideia da mudança do nome da língua falada no Brasil para “língua brasileira”, uma perspectiva de aprovação e a outra de refutação. Nesse caso, as perspectivas produziam diferenças quanto ao funcionamento da expressão, dado o movimento de adesão sintática que “concebe a relação entre língua e a textualidade” (idem, 1996, p. 65).
Assim, o autor tem defendido uma compreensão semântica e enunciativa do funcionamento da forma linguística, em que concebe que a adesão sintática dos termos funciona em consequência das determinações das condições de enunciação, pois:
O conceito de forma linguística que se estabelece nos estudos linguísticos a partir do século XX é definido seja por oposição a significado, seja por oposição a função. Em ambos os casos, forma é algo apreendido por traços fonológicos e morfológicos. Nessa direção, as formas linguísticas podem ser tomadas por órgãos estruturais da língua, como itens lexicais e morfemas. (DIAS, 2018a, p. 36)
Nesse sentido, torna-se necessário estabelecer uma nova compreensão que permita olhar para as unidades da língua, ou para os sintagmas, como unidades que se articulam pela verticalidade das dinâmicas envolvidas na enunciação. Para tanto, o autor observa a forma linguística pelo vínculo entre os referenciais históricos e pelas pertinências enunciativas de formulação do dizer “o fundamento da concepção de forma linguística permite compreender que a formação nominal é condensadora de referenciais, isto é, perspectivas de concepção da exterioridade captadas pela enunciação” (idem, 2021, p. 51).
No livro Enunciação e Relações Linguísticas (2018a), Dias apresenta um conjunto de análises mobilizadas a partir dos conceitos de formação nominal, referencial histórico, pertinência enunciativa e redes enunciativas, que o norteiam no objetivo de compreender sobre a significação das formas.
Esse conjunto de análises propõe que o movimento de nomear entidades no mundo é mobilizado por referenciais históricos, ou seja, que não há o estabelecimento de uma relação direta entre os nomes com as entidades do mundo, mas uma participação das palavras na construção de pertinências que sustentam os dizeres ao evocarem coisas ou eventos no mundo. Ou seja, se conseguimos dizer algo sobre o mundo e nomear os seus objetos é porque há um movimento produzido pela linguagem em que a língua é sensível a esse movimento e pode enunciar os acontecimentos de linguagem através da realização de suas formas.
Nesse sentido, o autor desenvolve o conceito de referencial histórico que tem a sua constituição inspirada no conceito de referencial proposto por Michel Foucault, na obra Arqueologia do Saber (1986), a propósito de uma alternativa à ideia de convencionalidade da referência.
Nessa propositura, o interesse não se dá em dizer que o enunciado possui uma correlação com entidades, com uma referência, ou, por exemplo, que um nome próprio precise designar algo no mundo, pois o referencial “Não é constituído de “coisas”, de “fatos”, de “realidades”, ou de “seres”, mas de leis de possibilidade, de regras de existência para os objetos que aí se encontram nomeados, designados ou descritos, para as relações que aí se encontram afirmadas ou negadas.” (FOUCAULT, 2008, p. 103).
Na visão discursiva da enunciação, sustentada por Foucault, o referencial não é um dado a priori, um objeto para que seja apontado no mundo, mas um domínio fundamentalmente constituído pelas relações sociais.
Nos estudos de Dias, o conceito de referencial histórico não é, integralmente, uma aplicação do conceito de referencial, tal como proposto por Foucault, pois entende-se que os enunciados possuem ancoragem nas relações sociais (os referenciais), mas também prospectam sentidos que são atualizados na formulação dos enunciados.
Assim, Dias (2018a, p. 142) define o conceito de referencial histórico como o:
domínio de ancoragem da significação na língua, a partir do funcionamento das relações sociais. Trata-se da filiação institucional dos nossos dizeres, quando a enunciação adquire suporte na constituição histórica da sociedade.
Nesse caso, somos instados a considerar que, se falamos socialmente é porque há um cenário de convivência e de compartilhamento entre os falantes, constituído em coletividade. A significação dos nomes, dessa maneira, se assenta em pontos de vista sociais que são compartilhados pela sociedade, inscritas em sua história e que, portanto, poderão ser concebidos por modos distintos.
O autor destaca, também, que os sentidos se tornam pertinentes por uma demanda da atualidade do dizer, ou seja, os referenciais históricos adquirem sentido na medida em que uma atualidade motivadora da formulação torna tais sentidos pertinentes.
A propósito dessa compreensão, formula-se o conceito de pertinência enunciativa definido por Dias (idem, p. 142-143) como:
a relação que um enunciado mantém com as cenas que nos acionam a dizer algo na instância do presente do enunciar. No cotidiano, nós somos evocados ou acionados a responder, interpretar, a interferir enunciativamente nas situações de enunciação que se nos apresentam. Quando tomamos a palavra, seja no oral, seja no escrito, o fazemos de diferentes maneiras tendo em vista diferentes situações de enunciação. Os nossos modos de enunciar, portanto, se adaptam a seu modo de pertencimento às cenas de enunciação do presente.
Nessa propositura, o conceito de pertinência enunciativa99 se configura por uma ideia de adesão ao dizer, suscitada por uma demanda do presente, como “as respostas, as interpretações, as inferências, que se efetivam na enunciação, isto é, as respostas às demandas do presente são constitutivas do acontecimento enunciativo (idem, p. 103).
Exemplo genérico. Não referido pelo autor.
Exemplo genérico. Não referido pelo autor.
Ao assumir que os nomes e os seus sentidos são formados socialmente, no acontecimento enunciativo, lança-se um outro olhar sobre as formas linguísticas e sobre o tratamento das regularidades linguísticas. A abordagem enunciativa, pela perspectiva relacional, permite que se observe as condições em que as construções, em articulação, produzam domínios de significação, oportunizando ressignificar conceitos de ordem dos estudos sintáticos, como o sintagma, pois entende-se que a linearização sintática também é impactada por uma verticalização dos espaços de memória.
Assim, os sintagmas não são analisados em seu caráter linear, mas pelas “constituições internas e externas das formas para a constituição da unidade nominal” (idem, p. 143), que constituem as formações nominais (FN). Os nomes adquirem um caráter relacional tendo em vista a pertinência do nome na relação com o enunciado do qual ele integra e com outros enunciados realizados anteriormente:
O estudo da formação nominal estaria centrado não na descrição do objeto produzido (sintagma nominal) e muito menos nas características fonético fonológicas ou gráficas da unidade, mas na constituição dos referenciais da sua produção, na razão das articulações que são contraídas interna e externamente à construção nominal. (DIAS, 2017, p. 124)
Desse modo, define-se formação nominal como “uma forma qualificada em teoria da enunciação na medida em que participa de um domínio referencial, constituído em espaços regulares na língua (lugar de sujeito na sentença, em que se encontra), e contrai pertinência com um campo de enunciação (idem, p. 150).
Em um rápido exercício1010, podemos observar o funcionamento relacional do nome próprio de pessoa Maria, que poderá ser perspectivado em cada atualidade de seu uso. Na FN dona Maria, é possível observar que os sentidos desse nome se dão pela relação que ele faz com o convergente pronominal dona, que faz um recorte nas possibilidades de configuração do nome próprio. O recorte feito pelo convergente pronominal adquire pertinência pela demanda da atualidade do dizer em designar uma classe de mulheres, trata-se de uma visão social que divide as formas de se reportar enunciativamente às mulheres, como dona, senhora, senhorita etc., sendo que essas formas da língua se apresentam a partir dessas visões sociais.
Ver SZUBRIS, E. B. et al. Siglonimização das cidades mato-grossenses: Brasnorte, Colíder, Colniza, Confresa, Sinop e Cotriguaçu. In: GUIMARÃES, E.; DIAS, L. F.; KARIM, T. M.; PRIA, A. D. (org.). Atlas dos nomes que dizem história das cidades brasileiras: Um estudo semântico-enunciativo do Mato Grosso (Fase II). 1. ed., v. 2. Campinas: Pontes, 2018. p. 117-132.
Ver SZUBRIS, E. B. et al. Siglonimização das cidades mato-grossenses: Brasnorte, Colíder, Colniza, Confresa, Sinop e Cotriguaçu. In: GUIMARÃES, E.; DIAS, L. F.; KARIM, T. M.; PRIA, A. D. (org.). Atlas dos nomes que dizem história das cidades brasileiras: Um estudo semântico-enunciativo do Mato Grosso (Fase II). 1. ed., v. 2. Campinas: Pontes, 2018. p. 117-132.
De igual modo, temos no enunciado Maria, mãe de todos os homens! A relação que o nome próprio faz com a FN mãe de todos os homens também produz um recorte na visão sobre o nome próprio, a partir dos sentidos mobilizados por referenciais constituídos em outros momentos, pelos referenciais da religiosidade cristã, em que se particularizam sentidos para o nome Maria.
Sobre o estudo dos nomes próprios, Dias apresenta, no artigo intitulado Nomes de cidades de Mato Grosso: Uma abordagem Enunciativa (2016), um estudo que se conduz pela observação da relação entre nome e objetos referentes dada a constituição das formas nas construções nominais e das pertinências que determinam os sentidos dos nomes de cidades.
Nesta abordagem, leva-se em consideração os conceitos anteriormente citados, sendo que, através deles é possível apreender um “estatuto enunciativo” para os nomes de cidades, constituídos pela dispersão de referenciais.
Os nomes de cidades de Mato Grosso, foram analisados pelo autor, a partir da disposição dos referenciais históricos que se constituem:
- a) Sob o domínio do referencial religioso, em que os nomes de santos padroeiros das localidades ou de outros elementos, que marcam a catolicidade do colonizador, participam como elementos de pertinência para as nomeações, como ocorre, por exemplo, em Vila Bela da Santíssima Trindade e São Luís de Cáceres;
- b) Nomes que se articulam pelo referencial da refundação e do diferencial, em que as formações nominais se constituem frente à outras já existentes, sendo que essa diferenciação se dá pela inserção dos convergentes adjetivais novo(a), como ocorre nos nomes Nova Maringá, Nova Bandeirantes etc.;
- c) Nomes como Querência e Vila Rica, em que o referencial do religamento constitui a designação por um processo enunciativo migratório dos primeiros habitantes “que traziam enunciados que lembravam a terra natal” (idem, p. 43);
- d) Nomes que se constituem pelo referencial das homenagens, em que nomes próprios de pessoas/personalidades se apresentam como o nome próprio do lugar, são os casos de Vera, Carlinda, Cláudia etc.;
- e) Há também nomes de cidades em que o referencial geográfico assume destaque nos acontecimentos de nomeação dessas localidades. Neste grupo os nomes provindos da rede hídrica acabam por constituir elementos de pertinência enunciativa para os nomes, como ocorre em Rio Bugres e cidade de Barra do Bugres;
- f) O fundamento empresarial que marca, diretamente, vários referencias para a constituição de nomes de cidades fundadas na década de 1970, em Mato Grosso. Nesse período, muitas empresas colonizadoras se instalaram ao norte do estado e os nomes dessas empresas constituíram elementos de pertinência para a nomeação das cidades, em alguns casos, a sigla da empresa1111História do município. Disponível em https://www.saojosedoxingu.mt.gov.br/...-Municipio/ Acesso em: 15 out. 2020.tornou-se o nome próprio de lugar, como pode ser observado na FN Sinop, constituído pela sigla da Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná;História do município. Disponível em https://www.saojosedoxingu.mt.gov.br/...-Municipio/ Acesso em: 15 out. 2020.
- g) a latência de nomes de cidades que se constitui quando o referencial de uma cena específica da constituição histórica da localidade torna-se pertinente estabelecendo a nomeação desta. Como ocorre na FN Feliz Natal, “cuja origem está ligada à saudação de trabalhadores de empresas colonizadoras que, por conta de dificuldade de locomoção no retorno para casa, passaram a noite de Natal à beira de um riacho onde viria se constituir a cidade” (idem, p. 34).
Como podemos ver, o estatuto enunciativo é configurado por referenciais que não explicam o significado (estático), nem buscam a descrição etimológica dos nomes, mas procuram observar a enunciação que envolve o “objeto de dizer, cuja pertinência se deve a direcionamentos sócio-históricos” (2016, p. 47-48).
Desse modo, tomar nomes próprios a partir da observação do seu funcionamento em formações nominais nos permite observar as condições em que as unidades articuladas determinam domínios de significação.
3 As dimensões articulatórias na Semântica da Enunciação
Para Dias (2018a, p. 117-118), o estudo da nominalidade “tem o compromisso de explicar a constituição das unidades nominais na sua estabilização como unidade de sentido na língua”. Nessa abordagem, o conceito de articulação torna-se produtivo para explicitar o domínio de mobilidade de sentidos definido como “as articulações de sentido socialmente configuradas que determinam as formas expressivas na constituição de uma unidade significativa” (idem, p. 17). Trata-se de um outro modo de olhar para as dimensões articulatórias da língua que se distingue do olhar intencional centrado na individualidade de quem diz ou, ainda, das condições de contexto do dizer expresso aqui e agora.
Cabe destacar, que o conceito de articulação foi trabalhado, anteriormente, por Guimarães (2009, p. 50) como:
procedimento pelo qual se estabelecem relações semânticas em virtude do modo como os elementos linguísticos, pelo agenciamento enunciativo, significam sua contiguidade. Ou seja, a organização das contiguidades linguísticas se dá como uma relação local entre elementos linguísticos, mas também e fundamentalmente por uma relação do Locutor (enquanto falante de um espaço de enunciação) com aquilo que ele fala. Uma articulação é uma relação de contiguidade significada pela enunciação.
Nessa propositura, considera-se que as articulações são relações contíguas que se realizam no enunciado apontando os sentidos relativos ao modo como um enunciado integra o texto, sentidos que significam o enunciado em virtude do texto que ele integra.
O autor considera que:
a articulação pode se dar de três modos diferentes: por dependência, por coordenação e por incidência. A articulação por dependência se quando os elementos contíguos se organizam por uma relação que constitui, no conjunto um só elemento. Por exemplo: em “Os meninos de vermelho” a relação é tal que “Os e de vermelho” vinculam-se a meninos constituindo uma única unidade (um grupo nominal (GN)). A articulação de coordenação é aquela que toma elementos de mesma natureza e os organiza como se fossem um só da mesma natureza de cada um dos constituintes, é o caso de “Os meninos e as meninas”, onde encontramos uma coordenação entre os meninos e as meninas. Em outras palavras, a articulação por coordenação se apresenta por um processo de acúmulo de elementos numa relação de contiguidade. E a incidência é a relação que se dá entre um elemento de uma natureza e outro de outra natureza, de modo a formar um novo elemento do tipo do segundo. Por exemplo, em “Até Pedro veio”, temos “Até” que incide sobre “Pedro veio”. “Pedro veio’ é um enunciado e “até” não. “Até Pedro veio” é um novo enunciado. A incidência é uma relação entre um elemento e outro sem uma relação de dependência estabelecida. (GUIMARÃES, 2009, p. 51) [grifo nosso]
No entanto, algo que precisa ficar estabelecido é que os modos de articulação não produzem sentidos de formas autônomas, pelas especificidades de sua relação, mas porque esses modos incluem as relações “com os lugares de enunciação que se dão no acontecimento que se constituem no acontecimento cuja temporalidade é o fundamento do sentido” (idem, 2018, p. 84).
De um outro modo, a perspectiva de Dias (2018a, p. 11) inclui no conceito de articulação a relação de nomes com elementos que não se apresentam na sequência material de um mesmo enunciado e que, dessa forma, se constituem como as razões enunciativas das articulações entre unidades sintáticas. Para o autor, “há uma dimensão de ordem semântica, comumente pouco explorada nos estudos sintáticos, que é relativa ao papel dos fatores comunicativos na elaboração das unidades linguísticas em articulação” (idem).
Sob esse direcionamento pode-se observar, no mínimo, três fundamentos que balizam as dimensões articulatórias das formas linguísticas: a) As articulações subnominais, que constituem os fundamentos para a entrada de nomes no léxico de uma língua, a partir de enunciados que os determinam; b) As articulações intranominais que se constituem por unidades nominais singulares que agregam formativos criando novos nomes na língua; c) As articulações internominais fundamentadas pelas motivações enunciativas das articulações que o nome contrai na constituição de grupos nominais.
Dessa forma, a nossa postura quanto à observação da significação dos nomes próprios se distingue de proposições naturalistas, convencionalistas, formalistas, intencionalistas e toponímicas, pois “o fazer sentido não está unicamente associado aos eventos, às entidades e ao tempo cronológico em que o dizer de manifesta materialmente. Ele também se associa a uma dimensão pressuposta e implícita da realidade objetiva, isto é, a uma instância de memória” (DIAS, 2018aa, p. 89) [grifo nosso].
Ao final desse esboço teórico, em que apresentamos as perspectivas dos estudos toponímicos e semântico-enunciativos, podemos assinalar que o foco da primeira perspectiva se dá pela observação do processo que leva à cristalização semântica do topônimo, que persiste como signo geográfico, preservando o referente.
Já a Semântica da Enunciação toma a significação dos nomes exposta ao acontecimento de enunciação e ao funcionamento das relações linguísticas. Nessa abordagem, a significação dos nomes próprios se distancia de abordagens que a consideram na relação direta da linguagem com o mundo, dada pela centralidade do sujeito, pelas relações lógicas ou intencionais de quem fala, que tomam o estudo dos nomes como palavra isoladas. Para esta abordagem, torna-se relevante demonstrar como os nomes se constituem como unidades de sentido no funcionamento na língua.
Como vimos, anteriormente, no exemplo do nome da cidade de Canarana, a capacidade referencial deste nome pode ser percebida para além da relação com o referente, passando a vincular-se a outros referenciais históricos (como o religioso). Vimos que o nome Canarana não significa, na história de fundação da cidade, apenas pelo processo descritivo do ambiente, mas por expor um fundo designativo vinculado ao gesto de nomear no acontecimento de linguagem específico, nesse caso, na enunciação do fundador, que agrega uma analogia fonética entre os nomes Canarana e Canaã.
Assim, buscamos observar o movimento de identificação social que os enunciados contraem, articulando sentidos para os nomes nos espaços enunciativos, em que cada nome presentifica pertinências enunciativas ancoradas em distintos suportes referenciais de sentido.
Passemos às análises.
4 Do Bang Bang ao Xingu: sentidos em convergência e em descontinuidade
a) Povoado do Bang Bang/São José do Bang
Para iniciarmos a nossa reflexão, tomaremos um recorte do texto histórico do município de São José do Xingu. Este documento é composto por enunciados que dizem sobre a fundação e seu o processo de nomeação, segundo a primeira divisão político-administrativa, se inicia com a criação do distrito, seguindo até a última divisão territorial de emancipação, conforme as respectivas leis e datas.
Vejamos os recortes 1 e 2:
R1- História do Município: [1.1] A colonização do núcleo que deu origem ao município de São José do Xingu deu-se a partir da fixação da nova fronteira agrícola brasileira, o Estado de Mato Grosso, na década de setenta. Os incentivos fiscais permitiram que novas áreas fossem povoadas, aumentando o contingente populacional estadual e criando novas unidades de colonização. [1.2] O núcleo original de povoamento surgiu na Fazenda Bang Bang, que tinha este nome em função dos inúmeros casos resolvidos à bala. Consta na história oral pelos mais antigos moradores que qualquer pendenga se resolvia em tiros. Lembrava os filmes de "bang-bang" - daí o nome que se deu ao lugar: Povoado do Bang Bang. [1.3] Com o passar dos tempos, a comunidade incorporou o nome do santo, ficando São José do Bang Bang. Não ficava bem o nome do orago ao lado de lembranças desagradáveis que a palavra "bang-bang" sugeria. No início da década de noventa, optou-se pela alteração da denominação. Em 20 de dezembro de 1991, através da lei estadual nº 5.904, foi criado o município de São José do Xingu. [1.4] A comunidade optou por deixar o nome do santo protetor no nome da localidade, São José, e acrescentar "do Xingu", em homenagem ao rio Xingu, que passa a 42 quilômetros da sede municipal e ao Parque Nacional do Xingu, que faz divisa com o município. [grifo nosso]
R2- Formação Administrativa: Distrito criado com a denominação de São José do Xingu, pela lei estadual nº 4295, de 26-05-1981, subordinado ao município de Luciara. Em divisão territorial datada de 1-VII-1983, o distrito de São José do Xingu figura no município de Luciara. Assim permanecendo em divisão territorial datada de 1988. Elevado à categoria de município com a denominação de São José do Xingu, pela lei estadual nº 5904, de 20-12-1991, desmembrado do município de Luciara e São Félix do Araguaia. Sede no antigo distrito de São José do Xingu (ex-povoado). Constituído do distrito sede. Instalado em 01-01-1993. Em divisão territorial datada de 1995, o município é constituído do distrito sede. Assim permanecendo em divisão territorial datada de 2001. Em divisão territorial datada de 2001, o município é constituído de 2 distritos: São José do Xingu e Santo Antônio do Fontoura. Assim permanecendo em divisão territorial datada de 20091212. [grifo nosso]
Fazenda Bang-Bang. Disponível em: https://www.fazendabang-bang.com.br. Acesso em: 30 abr. 2019.
Fazenda Bang-Bang. Disponível em: https://www.fazendabang-bang.com.br. Acesso em: 30 abr. 2019.
O processo de ocupação e desenvolvimento do estado de Mato Grosso, nas décadas de 70 e 80, do século XX, produziu significativas transformações nas áreas rurais e urbanas em todo território. O plano de interiorização do país, simbolizado pelo movimento Marcha para o Oeste, contribuiu, sobretudo, para a fundação de municípios constituídos a partir das políticas de integração de terras, que permitiram a vinda de colonos de várias regiões do país. A Expedição Roncador-Xingu, que oportunizou a criação do Parque Nacional do Xingu, também foi crucial para o surgimento de novos núcleos populacionais que deram origens às muitas cidades do estado de Mato Grosso.
Associado a este quadro, surge ao nordeste do estado São José do Xingu, município que se inicia com a instalação do Povoado do Bang Bang, renomeado, mais tarde, como São José do Bang Bang. Esses três nomes se articulam no processo constitutivo da localidade e se ancoram em referenciais históricos que constituem a memória local. A enunciação desses nomes se relaciona à essas memórias, a partir de uma demanda do presente do enunciar que articulam esses nomes no acontecimento de enunciação.
Podemos dizer que os enunciados que dizem sobre a fundação do município são perspectivados pelos referenciais históricos da colonização. As demandas do presente para enunciar a localidade se articulam com o primeiro nome que determina a espacialidade e a caracterização político-administrativa como “núcleo”. Extraímos o primeiro recorte do texto para observar essas perspectivações na FN:
[1.1] - A colonização do núcleo que deu origem ao município de São José do Xingu deu-se a partir da fixação da nova fronteira agrícola brasileira, o Estado de Mato Grosso, na década de setenta. Os incentivos fiscais permitiram que novas áreas fossem povoadas, aumentando o contingente populacional estadual e criando unidades de colonização[...]
No quadro 1, as pertinências enunciativas que sustentam sentidos para a colonização do núcleo se relacionam com as perspectivas que a fazem significar como parte do processo de desenvolvimento econômico da unidade federativa Mato Grosso, predicada por “nova fronteira agrícola brasileira” e, também, por “novas áreas povoadas/novas unidades de colonização”, que posicionam a criação da localidade em relação ao processo de desenvolvimento territorial e populacional de Mato Grosso.
Na sequência [1.1] retomamos a FN década de setenta, que exprime uma localização temporal não apenas como um marco cronológico, mas também a temporalidade de “um antes” que produz o efeito de continuidade do enunciado na relação com outros enunciados. Nesse caso, articulam-se os enunciados de colonização do núcleo com os acontecimentos de transformação de Mato Grosso, que ocorreram nesse período. Assim, a FN década de setenta se constitui como um referencial histórico temporal perspectivado pelos sentidos dos movimentos de colonização e desenvolvimento no Estado.
Dessa forma, vemos que os sentidos que funcionam na colonização do núcleo, que dá origem ao município de São José do Xingu, não são inaugurais, pois “o enunciado comporta inexoravelmente uma reivindicação de pertinência dessa relação, constituída no recorte do memorável pelo qual o nome é tomado na história frente aos referenciais do tempo enunciativo” (DIAS, 2016, p. 48).
Os referenciais históricos de colonização também se constituem como um marco enunciativo para a nomeação oficial da localidade. Conforme apresentado no R2 (p. 110), o nome São José do Xingu é oficializado pela Lei estadual nº 4295, de 26-05-1981, que cria o distrito. Dez anos após a sua instalação, o distrito alcança a emancipação, sendo elevado à categoria de município pela Lei estadual nº 5904, de 20-12-1991, permanecendo com o mesmo nome.
Vejamos o recorte 2 do texto:
R2-Distrito criado com a denominação de São José do Xingu, pela lei estadual nº 4295, de 26-05-1981, subordinado ao município de Luciara. Em divisão territorial datada de 1-VII-1983, o distrito de São José do Xingu figura no município de Luciara. Assim permanecendo em divisão territorial datada de 1988. Elevado à categoria de município com a denominação de São José do Xingu, pela lei estadual nº 5904, de 20-12-1991, desmembrado do município de Luciara e São Félix do Araguaia. Sede no antigo distrito de São José do Xingu (ex-povoado). Constituído do distrito sede. Instalado em 01-01-1993. Em divisão territorial datada de 1995, o município é constituído do distrito sede. Assim permanecendo em divisão territorial datada de 2001. Em divisão territorial datada de 2001, o município é constituído de 2 distritos: São José do Xingu e Santo Antônio do Fontoura. Assim permanecendo em divisão territorial datada de 2009. [grifo nosso]
Seguindo a leitura do texto de formação administrativa, nos chama a atenção no enunciado “Sede no antigo distrito de São José do Xingu (ex-povoado)”, o aposto constituído pela expressão (ex-povoado), funciona na perspectiva enunciativa como um convergente posicional por se relacionar ao elemento anterior por uma unidade explicativa.
No entanto, a aposição estabelecida entre a articulação de “ex-povoado” com o nome São José do Xingu, sobrepõe a existência do primeiro nome da localidade “Povoado do Bang Bang”, pois conforme o texto histórico, as nomeações primitivas da localidade foram: “Povoado do Bang-Bang” e “São José do Bang-Bang”.
As primeiras nomeações do povoado demonstram a relação dos primeiros habitantes com as condições de convivibialidade e das práticas sociais compartilhadas entre a população, naquele momento. A partir daí percebemos que há uma identificação social da população com a expressão “Bang-Bang”, que passa a integrar as formações nominais designadoras dessa localidade.
Vejamos essas relações nos recortes a seguir:
R1- [1.2] O núcleo original de povoamento surgiu na Fazenda Bang Bang, que tinha este nome em função dos inúmeros casos resolvidos à bala. Consta na história oral pelos mais antigos moradores que qualquer pendenga se resolvia em tiros. Lembrava os filmes de "bang-bang" - daí o nome que se deu ao lugar: Povoado do Bang Bang. [grifo nosso]
R2- O primeiro proprietário da Fazenda Bang Bang foi o Sr. Mauro Pires Gomes, entre 1983 e 1985, começou com o desmatamento na área. Muitos trabalhadores vieram nesta época para o município atraídos pelas empreiteiras de trabalho, e assim, aumentando o movimento de pessoas na cidade. Muitas brigas aconteceram neste período, um verdadeiro Bang Bang. Algumas pessoas dizem que o nome da Fazenda vem em decorrência destes acontecimentos, mas o Sr. Mauro Pires já havia nomeado a Fazenda como Bang Bang, pois o nome já fazia parte do nome da cidade, São José do Bang Bang. O Sr. Mauro Pires veio a falecer em 17 de Abril de 1985, vítima de acidente aéreo1313.
Disponível em: https://portalmatogrosso.com.br. Acesso em: 30 abr. 2019.
Disponível em: https://portalmatogrosso.com.br. Acesso em: 30 abr. 2019.
R3- BANG-BANG. Primitiva denominação de São José do Xingu, nordeste de MT, vizinho ao Parque Nacional do Xingu. O termo Bang-Bang é alusão ao som forte e súbito da detonação de arma de fogo, notadamente revólveres. A melodia furiosa, irascível e colérica, violentava a razão nas constantes desavenças motivadas por disputas pela posse do solo nos primeiros tempos de ocupação do lugar, quando o uso de armas tornou-se comum e banal na solução dos problemas com terras e venda ilegal de madeira. Prevaleceu por muitos anos a lei do mais forte, do semblante severo e fel na garganta[...]1414. [grifo nosso]
Anais do Senado Federal - outubro de 1996.
Anais do Senado Federal - outubro de 1996.
R4-São José do Xingu é o nome oficial da cidade organizada em torno de uma serraria, nos anos 1970, e que, por causa do grande número de mortos em brigas, no passado recente, foi popularmente batizada de Bang-Bang. Hoje, no parque, todos se referem a ela simplesmente como Bang1515. [grifo nosso]
Trata-se do Decreto-Lei n. 5901 de 1943, que combatia a pluralidade na utilização dos nomes geográficos como também intervinha nos modos de nomear as localidades de todo o território brasileiro. No artigo 7 º, do referido decreto, encontramos no inciso III algumas das orientações: III - Como novos topônimos, deverão ser evitadas designações de datas, vocábulos estrangeiros, nomes de pessoas vivas, expressões compostas de mais de duas palavras sendo, no entanto, recomendável a adoção de nomes indígenas ou outros com propriedade local [grifo nosso].
Trata-se do Decreto-Lei n. 5901 de 1943, que combatia a pluralidade na utilização dos nomes geográficos como também intervinha nos modos de nomear as localidades de todo o território brasileiro. No artigo 7 º, do referido decreto, encontramos no inciso III algumas das orientações: III - Como novos topônimos, deverão ser evitadas designações de datas, vocábulos estrangeiros, nomes de pessoas vivas, expressões compostas de mais de duas palavras sendo, no entanto, recomendável a adoção de nomes indígenas ou outros com propriedade local [grifo nosso].
Dos recortes dispostos acima, vamos mobilizar alguns enunciados que tematizam o nome “Povoado do Bang Bang”. Ao tomarmos a formação desse nome, pelo conceito de formação nominal, buscamos, em primeira instância, observar as razões enunciativas da convergência de enunciados que se condensam na forma desse nome.
A seguir apresentamos uma rede enunciativa para observar os enunciados que participam dessa confluência na FN Povoado do Bang Bang.
No quadro abaixo observamos a ocorrência de articulações subnominais ocorrem pela condensação de enunciados descritivos ou definidores em uma unidade nominal “que adquiriu uma estabilização social na relação entre os referenciais históricos e a pertinência enunciativa, ao ponto de se condensar em um nome” (DIAS, 2018a, p.121). Essa dimensão articulatória leva em consideração as relações de sentidos socialmente configuradas, em que enunciados descritivos sustentam pertinências enunciativas que determinam os nomes.
No quadro 2, observamos a constituição da FN Povoado do Bang Bang, que toma o nome em língua inglesa (Bang-Bang) em sua formação, vemos que este nome integra enunciados que produzem sentidos socialmente pertinentes para os moradores que assemelham o cotidiano violento do povoado às cenas dos filmes de faroeste: “muitas brigas aconteceram neste período, um verdadeiro bang bang”, “lembrava os filmes de bang-bang” etc. Nesse sentido, considera-se que o nome Bang Bang “resume uma história enunciativa da percepção das entidades expressas nos enunciados descritivos. Essa percepção das entidades e situações advém da constituição do seu sentido na história (idem, p. 120).
A partir dos enunciados dispostos em rede podemos perceber que há uma relação entre a memória cinematográfica dos “filmes de bang-bang” com a atualidade do acontecimento enunciativo que nomeia o povoado; o histórico de enunciações populares, que faz alusão ao cenário caótico dos filmes, se constituiu como socialmente pertinente para a população. Assim, observamos que os enunciados que constituem a unidade nominal do povoado possuem adesão com dizeres constituídos em outro lugar, as cenas do cotidiano local são perspectivadas pelos moradores em analogia à memória cinematográfica norte-americana.
A expressão bang-bang, de etimologia inglesa, é apresentada no dicionário Houaiss da língua portuguesa (2009, p. 254), adaptada ortograficamente como bangue-bangue, vejamos:
bangue-bangue s.m. (1975) 1. Troca de tiros; tiroteio 2 m.q FAROESTE (CINE LIT) 3. Troca de insultos, acusações etc.; altercação. GRAM pl.:bangue-bangues. ETIM ver bangue
bangue s.m 1. Ruído estrepitoso, repentino e de breve duração, estouro, fragor. Interj. Imita o som de uma pancada, disparo, explosão etc. ETIM ing. bang ‘pancada, explosão violenta’
Ao relacionar os enunciados do quadro 2 com as acepções apresentadas pelo dicionário compreendemos como a expressão “bang-bang” adquire nominalidade, integrando enunciados que constituem temáticas pertinentes para a sociedade.
Inicialmente, a expressão passa a ter existência social e linguística, por meio de um nome em língua inglesa, em seguida, através das relações linguísticas articuladas a enunciados que dizem sobre a produção cinematográfica, passa a designar um estilo de filme, na relação que faz com o nome faroeste (atribuído à região ocidental do continente norte-americano); mais tarde, a disseminação desses filmes, no cenário internacional, se constitui como um acontecimento específico que produz o movimento migratório do termo para outros espaços. Por fim, a assimilação de referenciais dos sentidos da expressão converge para a nomeação de lugares, ou seja, há um movimento de sentidos que produz uma história enunciativa para a expressão “bang-bang”, sendo que, à medida em que ela vai sendo enunciada, ocorre uma atualização temporal de sentidos.
Nesse movimento nos perguntamos, como a expressão Bang-Bang produz sentidos ao integrar enunciados em língua portuguesa?
Enunciar nomes de outras línguas no espaço de enunciação do Brasil, que toma a língua portuguesa, como língua oficial, significa dizer que os falantes de língua portuguesa estão, de algum modo, afetados por esta relação com a língua inglesa e demais línguas que se encontram distribuídas de forma desigual neste espaço. A desigualdade na distribuição de línguas trata-se, antes, de uma divisão política que institui a disputa pela palavra e o litígio entre as línguas em convivência nesse espaço.
Para Guimarães (2005, p.16), o político ou a política é:
caracterizado pela contradição de uma normatividade que estabelece (desigualmente) uma divisão do real e a afirmação de pertencimento dos que não estão incluídos. Deste modo o político é um conflito entre uma divisão normativa e desigual do real e uma redivisão pela qual os desiguais afirmam seu pertencimento. Mais importante ainda para mim é que deste ponto de vista o político é incontornável porque o homem fala. O homem está sempre a assumir a palavra, por mais que lhe seja negada.
Dessa forma, a expressão em língua inglesa, quando enunciada no espaço de enunciação do português do Brasil, mostra a força do litígio que há nesse espaço, ou seja, a inclusão do termo em inglês no sistema linguístico do português demonstra fortemente essa divisão. Nesse sentido, falar português é estar afetado por estas divisões que caracterizam o espaço de enunciação da Língua Portuguesa, espaço constituído pelas relações entre falantes e línguas, em que a Língua Portuguesa convive com as demais línguas que se articulam no espaço. Nesse caso, a enunciação se dá pelo agenciamento específico da língua, em que línguas e falantes são tomados por agenciamentos enunciativos configurados politicamente.
Dias (2016, p. 37) acrescenta que o funcionamento político no espaço de enunciação toma esse espaço como “um lugar de identificação dos enunciados, no qual os falantes enunciam, tendo em vista uma pertinência na relação com enunciados de outros falantes.” Isso significa que as pertinências enunciativas também são construtos dessa divisão política. Quando uma expressão como “bang-bang”, por exemplo, entra em funcionamento nos enunciados, a enunciação dessa expressão adquire pertinência por se relacionar a outros termos e expressões em funcionamento no uso presente da língua portuguesa.
Dessa maneira, quando se enuncia a expressão “bang-bang”, como nome para um lugar no Brasil, este nome não produz sentido de forma isolada, pois faz parte de um acontecimento de enunciação, cujo acontecimento supõe a articulação entre o termo e o enunciado do qual faz parte e a articulação do enunciado do qual ele faz parte com outros enunciados, esse movimento produz uma retomada ou atualização dos sentidos sociais para esse nome.
Adiante, podemos visualizar (quadro 3) como o nome do povoado é formado na enunciação, pela articulação dos referenciais sociais que adquirem pertinência articulados aos referenciais históricos da expressão “bang-bang”:
A rede exposta nos mostra que, pela nomeação, é possível observar um recorte da visão que se tem sobre o povoado, através de nomes que agregam perspectivas da sociedade. Como vimos, a expressão “bang-bang” aglutina um conjunto de falas que dizem sobre os modos conflituosos de vida dos primeiros moradores do povoado. Os fundamentos em que se apoiaram essas relações sociais foram determinantes para a produção de sentidos na constituição do nome “Povoado do Bang Bang”.
Seguindo a trilha da história de fundação do município, encontraremos enunciados que dizem sobre o processo de renomeação do povoado, veremos que no segundo nome novas unidades são agregadas à sua estrutura sendo atualizado como “São José do Bang Bang”.
Vejamos o recorte a seguir:
R1- [1. 3] Com o passar dos tempos, a comunidade incorporou o nome do santo, ficando São José do Bang Bang. Não ficava bem o nome do orago ao lado de lembranças desagradáveis que a palavra "bang-bang" sugeria. No início da década de noventa, optou-se pela alteração da denominação. Em 20 de dezembro de 1991, através da Lei estadual nº 5.904, foi criado o município de São José do Xingu.
O nome “São José” integra a formação nominal ao adquirir pertinências constituídas na relação da Igreja católica com a fundação do povoado, no dia 19 de março de 1974, de acordo com o calendário católico, neste dia é comemorado o dia de São José.
Nesse sentido, vemos que o enunciado “a comunidade incorporou o nome do santo, ficando São José do Bang Bang” expõe as vozes de uma comunidade que cultiva a religião, por tomar São José como padroeiro da localidade. Os sentidos de determinação do nome São José passam a incidir sobre o nome “Bang-Bang”, indicando uma relação de referenciais em contraste, sendo que “São José” agrega referenciais de religiosidade, paz e proteção e “Bang-Bang” agrega referenciais da memória local do povoado marcada por episódios de violência.
Na rede enunciativa exposta no quadro 4, explicitaremos os fundamentos do contraste entre os referenciais na formação do nome São José do Bang Bang:
Podemos dizer que, isoladamente, São José e Bang Bang são nomes que não possuem articulação de sentidos, no entanto, as relações linguísticas que articularam os nomes sustentam pertinências para as suas convergências na FN. As relações de sentidos foram contraídas não na somatória das unidades, mas na relação dos nomes com os dizeres sobre o povoado, pois ambos dizem algo sobre ele e o identificam de tal modo.
Vemos que, na sequência de [1.3], enuncia-se que população deliberou por um novo nome na emancipação político-administrativa do município, conforme dito no enunciado: “No início da década de noventa, optou-se pela alteração da denominação”. As razões enunciativas para a alteração da denominação decorreram pela desidentificação popular com a expressão “Bang-Bang”, conforme pode ser apreendido no enunciado “Não ficava bem o nome do orago local ao lado de lembranças desagradáveis que a palavra "bang-bang” sugeria.”
Embora o nome São José do Bang Bang seja silenciado no texto de formação administrativa, percebemos que a identificação social da população com este nome agregou uma “força enunciativa” que o manteve em funcionamento nas enunciações sobre a localidade.
A desidentificação com o nome São José do Bang Bang, contraída pelas perspectivas de sentidos em descontinuidade, ou seja, pelo conflito de sentidos na articulação entre “São José” e “Bang Bang”, constitui um cenário favorável para que o nome São José do Xingu seja evocado como a identificação oficial. Ademais, o nome São José do Xingu também encontra respaldo nos decretos vigentes, que orientam o não uso de nomes estrangeiros nas nomeações de cidades1616.
Versão on-line.
Versão on-line.
Vemos então que, por força dos decretos, a enunciação oficial produz uma divisão enunciativa de funcionamento para os dois nomes, em que o nome “São José do Bang Bang” se constitui como uma marca da identificação local, que se vincula à memória de fundação do povoado. Efetivamente, o nome “Bang-Bang” se marca no enunciado pela memória de “lembranças desagradáveis”, da qual pretende se desvincular.
Assim, podemos considerar que há uma relação de sentidos que não é empírica, pois enuncia-se aquilo que se pode enunciar e ao enunciar constrói-se condições para se falar das coisas. Desse modo, enunciar São José do Bang Bang, como nome oficial, passa a não significar aquilo sobre o que se fala.
b) São José do Xingu
Como vimos, a memória de enunciações dos nomes Povoado do Bang Bang e São José do Bang Bang apontam uma reconfiguração da designação que elas rememoram projetando outros sentidos. Como pudemos observar nos enunciados, esses sentidos foram articulados em descontinuidade, dado o conflito entre os referenciais históricos.
Dessa forma, ao retomarmos esses aspectos na análise da formação nominal “São José do Xingu”, percebemos que essa FN condensa um cruzamento de espaços de enunciação, nas quais a memória histórica da cidade e do território se articulam com outros referenciais que presentificam as pertinências enunciativas para o nome. Vejamos essas relações no recorte a seguir:
[1.4] A comunidade optou por deixar o nome do santo protetor no nome da localidade, São José, e acrescentar "do Xingu", em homenagem ao rio Xingu, que passa a 42 quilômetros da sede municipal e ao Parque Nacional do Xingu, que faz divisa com o município.
A atualização do nome São José do Xingu mantém os sentidos da relação do povoado com a Igreja católica acrescidos aos sentidos de pertencimento ao território “do Xingu”, os aspectos relativos à configuração territorial que circunda “o rio Xingu” e o “Parque Nacional do Xingu” participam como elementos da pertinência enunciativa do nome.
Assim, a articulação do nome pode ser apreendida conforme relações apresentadas no quadro 5:
Conforme Dicionário Ilustrado TupiGuarani1717, “a etimologia do nome “Xingu” é desconhecida, “estudiosos acreditam que a tradução seria “Casa dos Deuses”, sem a certeza de qual seria sua verdadeira raiz subjacente”. Já Antenor Nascentes (1952) apresenta a etimologia que se constitui por “xin” (tin, tsin ou txin) + “gu” “gua”, que significa grande quantidade de água que escoa por uma ponta.
Biblioteca IBGE. Histórico de Nova Xingu. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil. Acesso em: 20 maio 2021.
Biblioteca IBGE. Histórico de Nova Xingu. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil. Acesso em: 20 maio 2021.
Sobre a questão da etimologização de palavras indígenas, Navarro (2013, p. 537), nos diz que, na elaboração do Dicionário Tupi Antigo, foram selecionados cerca de 2.000 topônimos e antropônimos, conforme suas respectivas etimologias, no entanto, muitas palavras não puderam ser etimologizadas por inúmeros fatores, uma delas são as modificações na composição das palavras que impossibilitam a aproximação com a sua raiz.
No entanto, podemos dizer que, apesar da inexistência de um saber sobre a descrição etimológica, o nome Xingu se constitui como um marco enunciativo no estabelecimento de nomes de lugares no Brasil. Nos casos de cidades que circundam o território banhado pelo Rio Xingu (São José do Xingu, Santa Cruz do Xingu, São Félix do Xingu, Xinguara e Vitória do Xingu), as pertinências enunciativas se constituem pelas perspectivas de localização e das relações históricas, políticas e territoriais que se configuram entre o rio e as cidades que vão surgindo em seu entorno. Em outro caso, como ocorre na nomeação da cidade de Nova Xingu (RS), a pertinência enunciativa se constitui pela perspectiva de homenagem. Podemos observar esse movimento em um enunciado histórico do município: “O nome Xingu é oriundo da vontade do colonizador (Dr. Herrmann Mayer) em homenagear a região do Xingu no Mato Grosso, onde esteve estudando os Índios de lá e onde a boa relação tida com eles o fez prestar-lhe essa homenagem”1717.
Biblioteca IBGE. Histórico de Nova Xingu. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil. Acesso em: 20 maio 2021.
Biblioteca IBGE. Histórico de Nova Xingu. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil. Acesso em: 20 maio 2021.
Dessa forma, podemos considerar que o nome de origem indígena “Xingu” integra as formações nominais da qual faz parte, por se constituir como um marco enunciativo no estabelecimento de nomes próprios de lugares brasileiros, visto que este nome não funciona pelo movimento de descrição etimológica, mas pelas “razões enunciativas para a sua estabilização como uma unidade temática” (DIAS, 2018a, p. 117).
Assim, a FN São José do Xingu constitui um nome que refunda o povoado, como distrito e, posteriormente, como município, por tomar outros referenciais que constituíram pontos de pertinência na constituição do sentido do nome. E essa constituição se dá como diferenciação entre o nome antigo “São José do Bang Bang” e o novo nome “São José do Xingu”.
5 Considerações finais
Como vimos, o processo de nomeação da cidade de São José do Xingu foi marcado pela disjunção da identificação social entre dois nomes, nos primeiros anos de sua constituição. As articulações de sentidos que fundamentam a significação desses nomes, no processo, demonstraram que as pertinências sociais que sustentaram esses nomes advêm das relações sociais compartilhadas na primitividade de constituição da localidade, marcada pela memória de sua fundação.
Assim, observamos que, mesmo com o ato de oficialização do nome São José do Xingu, no ano de 1981, o nome “Bang-Bang” acabava por sobrepujá-lo nas enunciações sobre a cidade. Nesse movimento, o nome de origem indígena Xingu passa a significar na formação nominal (oficial) a reconfiguração do nome pela exclusão do Bang Bang perspectivado pelo afastamento da memória primitiva da localidade.
Ao final deste estudo, acreditamos que as reflexões propostas possam contribuir para os estudos relacionais da língua, na Semântica da Enunciação, dando visibilidade às relações linguísticas subjacentes ao processo de constituição das formações nominais. Como vimos, essas relações demonstram como cada forma da língua possui razões enunciativas para se configurarem de tal modo.
Appendices
Abstract
1 Introdução
2 O nome próprio na Lexicologia e na Semântica da Enunciação: questões sobre sentido e referência
2.1 Os estudos toponímicos
2.2 Os estudos semântico-enunciativos
2.2.1 Semântica da Enunciação: uma disciplina do funcionamento da língua e da linguagem
2.2.2 Formas linguísticas e relações linguísticas: em defesa da enunciação
3 As dimensões articulatórias na Semântica da Enunciação
4 Do Bang Bang ao Xingu: sentidos em convergência e em descontinuidade
a) Povoado do Bang Bang/São José do Bang
b) São José do Xingu
5 Considerações finais
Appendices