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Tue, 23 Jan 2024 in Domínios de Lingu@gem
Fica Espanhol no Paraná: trajetória, lutas e conquistas em prol do plurilinguismo na Educação Básica
RESUMO
Este texto apresenta resumidamente a trajetória de ações e as perspectivas do movimento Fica Espanhol no Paraná. A ênfase histórica está nos trabalhos registrados a partir de 2016, quando o então presidente da república propôs alterações na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, afetando diretamente as políticas linguísticas. Essas proposições foram aprovadas e, em 2017, culminaram na Lei 13.415, que retira o direito de consulta à comunidade escolar e institui, de modo antidemocrático, um único idioma como de oferta obrigatória em todas as escolas do país. Diante de tantos atos discricionários, as manifestações começaram a surgir e as universidades públicas paranaenses se uniram para lutar pelo plurilinguismo, pela democracia nas políticas linguísticas e por uma lei que assegure o direito de aprender a língua espanhola na Educação Básica (EB) no Paraná. Mediante ampla mobilização política, com participação dos professores da EB, dos estudantes dos cursos de Letras Espanhol das Instituições de Ensino Superior (IES) do Paraná e de autoridades representativas, o movimento alcançou relevantes resultados, os quais culminaram na aprovação de uma emenda à constituição do estado Paraná, que assegura a oferta do ensino de Espanhol no Ensino Fundamental II e Ensino Médio. Neste momento, o Fica Espanhol no Paraná acompanha a implementação da Lei e luta para que ela ocorra de modo efetivo.
Main Text
1 Introdução
não há esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o que se espera na espera pura, que vira, assim, espera vã. (Paulo Freire)
Em 2016, logo após o golpe contra a presidente Dilma Rousseff, a reforma da Educação foi a pauta nacional. Nós, professores de espanhol, já sabíamos que nosso componente curricular seria atacado, que o lugar duramente conquistado seria invadido. As disciplinas que visam promover criticidade e reflexão entraram imediatamente em linha de mira, deixando de ser relevantes para um projeto neoliberal que retomava o país de forma autoritária, antidemocrática e extremamente excludente e elitista. Lamentavelmente, por sentirem-se em situação favorável, alguns professores apoiaram essa arbitrariedade, ignorando sua posição de colonizado que ensina a cultura do outro como superior à sua, “em lugar de buscar a libertação, na luta e por ela, tendem a ser opressores também, ou subopressores” (Freire, [1970] 2018, p. 21).
Neste cenário, nós, professores e pesquisadores da área de Línguas Estrangeiras Modernas, fomos totalmente ignorados - sem nenhum momento de diálogo, sem nenhuma justificativa e sem nenhuma explicação - em relação às alterações feitas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (a conhecida LDB), à revogação da Lei nº 11.161/2005 (de oferta obrigatória do ensino de Espanhol no Ensino Médio), e à criação da 13.415/2017, que impõe o ensino de uma única língua e impede a consulta à comunidade escolar. Na contramão das grandes potências mundiais, que estão ampliando o número de idiomas oferecido nas escolas, o Brasil retrocede, fechando as portas para o diálogo com o mundo plural no qual vivemos.
A nosso ver, essa articulação está muito distante de ser neutra. Ela vinha sendo ardilosamente planejada. As grandes corporações desse país, cujos laços com os E.U.A. são bastante estreitos, sempre que percebem que sua hegemonia pode ser afetada, mudam as regras. Afinal, que medo é esse da oferta do Espanhol nas escolas? Por que tanta pressa em impor um único idioma na grade curricular da Educação Básica brasileira?
Além da perspectiva liberal, de que o conhecimento escolar precisa ser útil para o trabalho (como mercadoria), essa ação imediata pode nos dizer algo mais. A aprendizagem de espanhol nas escolas, somada a outras ações de aproximação, estava fazendo com que tomássemos mais ciência de que somos todos América Latina. Começamos a pensar em nossas características em comum, em nossa trajetória de colonizados, de explorados, de ignorantes em relação à própria cultura e de imitadores dos valores culturais europeus e norte-americanos. Começamos a ver que há beleza na vizinhança, que a música deles comunica cultura nossa, que los hermanos são muito mais parecidos conosco do que os atores dos filmes de Hollywood e das séries europeias. Como latino-americanos, começamos a estabelecer conexões, a pensar em união; nas redes sociais, alguns brasileiros chegaram até cogitar, em um tom de humor e jocosidade, uma tal URSAL (União das Repúblicas Socialistas da América Latina); talvez preferíssemos uma UAL (União da América Latina).
Mas infelizmente só começamos. Já imaginou se isso ganha força? Já pensou se a América Latina se unifica para disputar espaço no mundo? Temos petróleo, minérios, gás, aço, alta produção de alimentos e tecnologia em desenvolvimento. Temos um bom clima, uma terra produtiva, temos a Amazônia e uma hidrografia que ainda causa inveja. De acordo com o relatório do PNUD - Programa da Nações Unidas para o Desenvolvimento,
Só a América do Sul contém quase a metade da biodiversidade terrestre e mais do que um quarto das florestas do planeta. O litoral mesoamericano tem o recife de coral mais longo do hemisfério ocidental e a região inteira tem 700 milhões de hectares de terra potencialmente cultivável, 570 milhões de hectares de pradarias, mais de 800 milhões de hectares de área verde e 27% da água doce disponível no mundo. (PNUD, 2010, p. 1).
Neste mesmo relatório, o PNUD descreve o avanço das tecnologias bio-sustentáveis em diversos países latinos, também destaca todo potencial de turismo da região. Considerando a década de 2000 a 2010, o PNUD informa que “a América Latina e o Caribe alcançaram taxas de crescimento e de redução da pobreza bastante satisfatórias. A região também demonstrou uma grande capacidade de resistência e recuperação frente à recente crise financeira” (PNUD, 2010, p. 3). Ou seja, tudo indica que estávamos trilhando um bom caminho. Uma união política, que colocasse essas riquezas em uma mesma base da balança no mercado internacional, seria realmente de um peso significativo. Quem poderia nos vencer?
Venceram-nos antes. As alterações nas políticas linguísticas foram apenas um pequeno componente do conjunto de ações para impedir o fortalecimento da América Latina. E.U.A jamais permitiriam isso, teriam que enfrentar uma concorrência que se uniu pela criticidade, não pela imposição. Não poderiam oprimir a Venezuela, pois ela seria Brasil; não poderiam influenciar tanto o nosso mercado, seríamos mais fortes. Cortaram no talo, na raiz, essa nossa utopia. Aliançaram-se rapidamente às piores aves de rapina de nosso país, fizeram seus acordos e muita carne morta sobrou para esses abutres. E o que fizemos? Não aceitamos o “porque sim”, lutamos.
Nesse texto, temos por objetivo relatar e discutir as ações políticas realizadas pelo movimento Fica Espanhol no Paraná diante de tantos atos discricionários e antidemocráticos. Salientamos que este manuscrito está fortemente marcado pela subjetividade, pelas nossas perspectivas dessa luta, pois a vivenciamos, fomos parte integrante, narradoras-personagens, não apenas observadoras do agir de outrem.
A filosofia freiriana somada aos estudos sobre (des)colonialidade (Mignolo, 2006, Quijano, 2005) e geopolítica e políticas linguísticas (Arnoux, 2000, Zacchi; Santos, 2018, Hidalgo; Vinhas, 2021) deram sustentação tanto para nossa luta quanto para a produção desse relato.
2 Ações fundamentadas
Diante da não explicação do governo em relação à retirada da oferta do ensino de Espanhol das escolas, conclusões mal-intencionadas, com base em crenças, foram disseminadas; o preconceito linguístico se fortaleceu e se fez necessário provar, com estudos científicos, que a questão era política, não falta de interesse dos(as) alunos(as) e da comunidade escolar. Vargas e Drogui (2020) apresentam um percurso histórico e analisam dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) em relação à escolha dos(as) candidatos(as) ao Ensino Superior que realizam a prova ENEM; as pesquisadoras comprovam que nas edições analisadas, de 2013 a 2015, mais de 60% optaram pelo Espanhol, ou seja, nos anos que antecederam a revogação da Lei nº 11.161/2005, menos de 40% escolheram a língua que a “Reforma” colocou como única no currículo para o Brasil todo, desrespeitando diversos contextos, inclusive os fronteiriços.
Hidalgo e Vinhas (2021), que discutem e analisam os efeitos sócio-histórico-ideológicos das políticas linguísticas mais recentes no Brasil, afirmam que “retirar o espanhol dos currículos é retirar dos alunos possibilidades de reflexão sobre diversos países da América Latina, os quais passam ou passaram por problemas sócio-históricos análogos aos do Brasil” (Hidalgo; Vinhas, 2021).
Esses ataques ao plurilinguismo, financiados por um projeto de poder que visa, claramente, enfraquecer a América Latina e manter o domínio norte-americano, só não incomodam os não conscientes de seu lugar no mundo, de sua conjuntura geopolítica. “A escolha da língua inglesa como língua obrigatória no currículo só vem a reforçar o discurso neoliberal presente na lei” (Hidalgo; Vinhas, 2021, p. 217), educadores, no sentido freiriano do termo, não podem aceitar passivamente um entorno opressor, precisam agir no enfrentamento.
Zacchi e Santos (2018) explicam que “a presença da língua inglesa e da cultura estadunidense na América Latina tem toda uma relação de poder que vem pelo menos desde a época do império britânico” (Zacchi; Santos, 2018, p. 389). Os autores também pontuam que o Mercosul e a oferta da língua espanhola nas escolas:
[...] são iniciativas que procuram minimamente compensar essa situação. Sob esse prisma, a revogação da obrigatoriedade do espanhol, bem como outras propostas da reforma do ensino médio, é certamente um retrocesso (Zacchi; Santos, 2018, p. 389).
O estado do Rio Grande do Sul foi precursor nas iniciativas de luta, já em 2017 se articulou politicamente e, em 2018, conseguiu aprovar uma emenda constitucional de oferta obrigatória de espanhol na Educação Básica.
No Paraná, tentou-se também algumas mobilizações em 2017, mas as estratégias foram equivocadas e tivemos que reiniciar as tratativas. Em 2018, buscamos uma representatividade política alinhada à nossa visão de mundo, alguém que pudesse caminhar conosco na luta por uma lei do Espanhol em nosso estado. Romper com comportamentos colonialistas é um desafio. Mignolo (2006) explica que:
[...] a lógica da colonialidade opera em três diferentes níveis: - colonialidade do poder (político e econômico): - colonialidade do saber (epistêmico, filosófico, científico e na relação das línguas com o conhecimento) e - colonialidade do ser (subjetividade, controle da sexualidade e dos papéis atribuídos aos gêneros etc.) (Mignolo, 2006, p. 13, tradução nossa)1.
No âmbito da “colonialidade do saber” estão as políticas linguísticas que, por sua vez, também fazem parte da “colonialidade do poder”. É parte de um projeto político-econômico manter a subserviência dos povos a grandes potências mundiais. Pouco se questiona em relação ao domínio do inglês; a cada ano aumenta o número de escolas particulares da Educação Básica que incluem em seus slogans o enunciado “ensino bilíngue”, e já fica subentendido que se trata de português e inglês. Mignolo (2006, p. 13) explica que para promover movimento de decolonialidade é preciso romper com um colete de forças de diversas categorias de pensamento que naturalizaram a colonialidade do saber e do ser e as justificam na retórica da modernidade.
Quijano (2005, p.124) chama a atenção para a percepção da mudança histórica no contexto latino-americano, em que se propõe uma nova perspectiva em relação ao tempo e à história. Tal visão, segundo o autor, é fundamental para pensar a América Latina como um cenário divergente no que se refere às hegemonias política e econômica impostas pela herança colonial. Trata-se de revisitar a própria história, em prol de um futuro libertário, sem as amarras ideológicas do colonizador. Para isso, faz-se necessário agir; segundo ele, somente a ação pode levar à mudança e à construção de um futuro:
A percepção da mudança leva à ideia do futuro, já que é o único território do tempo no qual podem ocorrer as mudanças. O futuro é um território temporal aberto. O tempo pode ser novo, pois não é somente a extensão do passado. E, dessa maneira, a história pode ser percebida já não só como algo que ocorre, seja como algo natural ou produzido por decisões divinas ou misteriosas como o destino, mas como algo que pode ser produzido pela ação das pessoas, por seus cálculos, suas intenções, suas decisões, portanto como algo que pode ser projetado e, consequentemente, ter sentido (Quijano, 2005, p. 124, grifos nossos).
A nosso ver e considerando nosso contexto, essa ruptura só é possível a partir da ocupação de espaços de poder, da ação, da união para ter representatividade política entre os que decidem e elaboram as leis às quais temos que nos submeter. O tempo de mudança está dado e urge tomar consciência do nosso protagonismo diante da nossa história.
3 Alinhamentos políticos
Em período de eleição, procuramos o candidato a deputado estadual Arilson Chioratto (PT), dialogamos e obtivemos o compromisso de que, vindo a vencer as eleições, apoiaria a causa coletiva e educacional da oferta de espanhol nas escolas paranaenses. Em 2018, também promovemos ações nas universidades, uma delas foi a gravação em vídeo do brado do “Fica Espanhol no Paraná” que gerou amplo engajamento nas redes sociais.
Arilson venceu, assumiu em 2019 e já procurou o movimento para honrar seu compromisso. No mesmo ano, conseguiu três reuniões, uma com a comissão de Educação da ALEP (15/10) e duas no dia 17/12, uma pela manhã, na ALEP, com o então líder do governo e presidente da comissão de Educação, Hussein Brakri (PSD), e o secretário de Educação naquele período, Renato Feder. Nessa reunião, o deputado Hussein Bakri destacou o modo respeitoso como o movimento Fica Espanhol vinha se articulando e pediu ao secretário de Educação que encontrasse caminhos para atender às nossas necessidades. O secretário solicitou que nos reuníssemos com ele novamente, à tarde, na Secretaria Estadual de Educação (Seed), juntamente com o então diretor de Educação, Prof. Raph Gomes Alves, e outros membros da Seed.
À tarde, na Seed, com a presença de representantes da Unespar, da UEL, da UEPG, da UFPR e do IFPR e da assessoria de imprensa do deputado Tiago Amaral (PSB), apresentamos à liderança da Seed nossas angústias e propusemos alternativas de solução. Nessa ocasião, entregamos um documento escrito2 por várias mãos, no qual expusemos nossas demandas, argumentos e caminhos para a implementação do ensino de espanhol na matriz curricular da Educação Básica paranaense. Destacamos a necessidade da proposição de uma emenda à constituição do Paraná, que acrescentasse a oferta de Língua Espanhola nas escolas; também enfatizamos que não poderíamos afetar a carga horária de nenhum outro componente curricular. Não queríamos sair do papel de oprimidos para nos tornar opressores de um outro grupo, posto que “a superação autêntica da contradição opressores-oprimidos não está na pura troca de lugar, na passagem de um polo a outro” (Freire, 2018, p. 61).
O secretário de Educação comentou que, com a nova lei do Ensino Médio, a ampliação de carga horária se faria necessária e ele via caminhos para inserção do espanhol na matriz, mas não para 2020, posto que o planejamento já estava definido. Diante disso, solicitamos, em tom quase de súplica, que fosse emitida uma nota, por escrito, desse comprometimento da Seed com o Movimento Fica Espanhol no Paraná; explicamos que professores de espanhol de todo o estado estavam aguardando ansiosos o resultado dessa reunião e, como não teríamos mudanças para 2020, ter registrado esse compromisso para 2021 traria um alento e forças para resistir mais um ano. Nosso pedido foi acatado e dia 19 de dezembro a nota3 foi emitida e acabou tendo uma relevância muito grande no decorrer da luta.
Ao término dessa reunião, aproveitamos para retomar a necessidade de criação de um grupo de trabalho, com a participação de membros da Seed. A solicitação foi aceita e os encaminhamentos seguiram em 2020.
Em julho de 2019 também iniciamos nossas ações nas redes sociais, abrimos uma página no Facebook e um perfil no Instagram, começamos a publicar, diariamente, posts com mensagens de luta e de defesa do ensino de espanhol no Paraná. Realizamos encontros presenciais e participamos de protestos em defesa da Educação.
Terminamos 2019 com a esperança de 2021 ser um ano com inserção de espanhol na matriz do EM, mas isso não se concretizou.
4 O Grupo de Trabalho Espanhol no Paraná
Fizeram parte desse grupo professores da UEL, Unespar, UEPG, Unioeste, Unicentro e UENP. Em 2020, já chegando o segundo semestre, o Grupo de Trabalho (GT) não havia realizado nenhuma reunião com a Seed. A nossa primeira reunião foi dia 02 de setembro de 2020, buscamos mostrar os espaços na matriz que o espanhol poderia ocupar, sem afetar nenhum outro componente curricular. Tivemos mais cinco reuniões neste mesmo ano (18/09, 13/10, 23/10, 27/11 e 04/12), mas de nenhuma saímos com algo sólido.
A pandemia nos impossibilitou movimentos presenciais de luta nas universidades, escolas e até nas ruas. Vimo-nos diante da necessidade de fortalecer as redes sociais e os encontros virtuais. As reuniões com Seed também foram todas online e, apesar de a Educação no Paraná ter exposto que se manteve ativa, quando cobramos o ingresso na matriz do EM como nos fora prometido, ouvimos que, devido à pandemia, não seria possível para 2021.
No dia 23 de outubro de 2020, na reunião do GT com a Seed, conseguimos um espaço para inclusão de um itinerário de espanhol (PARANÁ, 2021), para ser ofertado nas eletivas do Novo Ensino Médio que estava em construção. A professora Lucimar Braga, da UEPG, encabeçou esse projeto e o fez concretizar, em dezembro estava pronto. Vale ressaltar que profissionais das outras disciplinas foram convidados pela Seed para elaborar os itinerários e tiveram um prazo bem mais longo.
Iniciamos 2021 cientes de que sem uma Lei de oferta obrigatória de espanhol nas escolas, não teríamos espaço. Promessas, sem lei, são somente promessas, muda-se a autoridade representativa e ninguém precisa cumpri-las. Nossos diálogos com o deputado Arilson Chioratto estreitaram-se e passamos a decidir pela proposição de um projeto de lei ou de uma emenda à constituição.
Seguindo os conselhos da professora Glenda Heller Cáceres, que participou do movimento no Rio Grande do Sul e hoje é docente da UFPR, decidimos pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC).
5 A proposição da PEC
A escrita do texto da PEC foi outro momento de bastante tensão e cuidado. Algo que sempre prezamos foi que nosso componente curricular não entrasse no lugar de outra disciplina, não queríamos fazer com ninguém o que fizeram conosco. Como afirma Paulo Freire, muitas vezes a vontade do oprimido não é acabar com a opressão, mas tornar-se um. Essa nunca foi nossa vontade, por isso tomamos todo cuidado.
A lei 13.415/2017 propõe a ampliação da carga horária para o EM e o estado do Paraná já havia sinalizado a necessidade de ampliar para o Fundamental II também. Foi nesse espaço que propusemos nossa inserção, desde o início. No texto inicial da PEC, construído por professores do movimento juntamente com a assessoria do deputado Arilson Chioratto, solicitamos a oferta obrigatória do espanhol na matriz curricular no Ensino Fundamental II e do Ensino Médio, como um direito assegurado aos nossos estudantes.
Dia 07 de julho de 2021, o deputado dialogou com seus colegas da Assembleia Legislativa do Paraná (ALEP), conseguiu as 18 assinaturas de autoria e protocolou a PEC.
6 Os movimentos do Movimento
Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão. (Paulo Freire)
Com a PEC protocolada, passamos para uma nova fase, a luta por sua aprovação. Uma PEC precisa passar pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), seguir para uma comissão especial e ser votada duas vezes pela ALEP.
Nesse momento, criamos grupos de WhatsApp por região e buscamos apoio de deputados, vereadores, prefeitos, reitores, empresas, associações comerciais e industriais, autoridades religiosas etc. Desses grupos, faziam parte professores das IES, da ED e estudantes. Criamos modelos de carta e de moção de apoio. A luta coletiva evidenciou-se, batemos de porta em porta, conseguimos mais de 100 cartas e moções. Fizemos ampla divulgação desses documentos nas redes sociais e começamos a marcar os deputados pedindo aprovação da PEC. Paulo Freire explica que
Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor, e se engajam na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si mesmos, superando, assim, sua “conivência” com o regime opressor. (Freire, 2018, p. 72)
Não foi fácil, a PEC passou cinco vezes pela CCJ, até que fosse aprovada. Em cada sessão, como pudemos acompanhar online, nos unimos no chat, reivindicando um “sim”.
6.1 A tramitação da PEC na CCJ: uma luta de Davi contra Golias
Uma proposta de emenda à constituição, após conseguir a assinatura de pelo menos um terço do número de deputados da Assembleia Legislativa, é protocolada e encaminhada para ser avaliada e votada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Como nosso texto seguia todas as normas do regulamento, imaginamos que seria aprovado já na primeira sessão; entretanto, não foi o que ocorreu. O processo foi árduo, um duelo de forças com o governo.
Dia 26 de outubro de 2021, a PEC passou pela primeira vez na CCJ4 e o relator foi o deputado Homero Marchese (PROS) que, a nosso ver, ao invés de apresentar a PEC, opinou contra ela com argumentos juridicamente inconsistentes, recomendando baixar diligência. O deputado Arilson Chioratto, em seu turno de fala, fez a defesa, explicando que a sociedade estava apoiando a causa, citou as mais de 100 cartas e moções recebidas, fez referência à existência de uma emenda como essa já aprovada no Rio Grande do Sul, mencionou os diálogos construídos com a Seed e pediu que fosse votada. O deputado Tadeu Veneri (PT) lembrou ao deputado Homero Marchese que o papel da CCJ é o de dar um parecer de constitucionalidade ou inconstitucionalidade, não debater a aplicabilidade. O deputado Nelson Justus (PDT) somou-se ao discurso de Tadeu Veneri, sugerindo que encaminhassem para votação.
Quando parecia que se encaminharia para a votação, o deputado Hussein Bakri pediu que fosse adiada para que pudessem avaliar melhor. Márcio Pacheco (PPL) também se somou ao discurso de Hussein, dizendo que deveriam acatar a recomendação do relator. A votação ficou adiada para a próxima sessão da CCJ.
A segunda ocorreu em 09 de novembro. O deputado Homero Marchese iniciou dizendo que se opunha à PEC porque a Seed havia informado que já cumpria a oferta de espanhol nas escolas. Acrescentou que, embora a Seed não apontasse, ele via problemas em relação a questões orçamentárias. Reforçou seu voto contrário.
O deputado Arilson Chioratto fez novamente a defesa e rebateu os argumentos de Homero Marchese. Tadeu Veneri e Tião Medeiros (Progressistas) também discursaram em defesa da PEC e de que fosse votada. Assistíamos ansiosos(as) e, depois dessas três falas em defesa, estávamos com muitas esperanças de que fosse aprovada. No chat da transmissão ao vivo, professores e estudantes de todo o Paraná participavam, pedindo a aprovação, conforme imagem 1.
Mas, como um verdadeiro “balde de água fria”, Hussein Bakri pediu vistas, fazendo com que a votação fosse adiada para a próxima semana. Nesse momento, ficou claro para nós que o governo realmente não queria a aprovação da nossa PEC, percebemos que a cada sessão uma peça do tabuleiro era mexida para impedir que o texto fosse votado. Por outro lado, o receio dos deputados da base em passar pela votação nos indicava que, se passasse, havia grandes chances de ser aprovada.
Diante desse quadro, tratamos de buscar um diálogo mais próximo com Hussein Bakri. Solicitamos à reitoria da Unespar que mediasse essa interação, buscando apoio e explicando a importância dessa PEC para as universidades e para a Educação Básica paranaense. A reitora encaminhou-lhe um documento elucidativo que produzimos e conversou diretamente com ele. Também fizemos posts nas redes sociais, ressaltando a constitucionalidade de nossa PEC e marcamos fortemente os(as) deputados(as) da CCJ nesse período.
A terceira sessão de relação da PEC foi dia 16 de novembro de 20216, o deputado Hussein Bakri iniciou dizendo que concordava com boa parte do discurso do deputado Homero Marchese, mas votaria pela admissibilidade da PEC, com a recomendação de que a comissão especial tratasse das questões referentes à redação final do texto. Os deputados Tião Medeiros e Tadeu Veneri voltaram a discursar em defesa de que fosse votada e já manifestaram o voto favorável.
Homero Marchese, em seu turno de fala, mencionou que todos estavam sendo marcados nas redes sociais com pedidos de apoio ao ensino de espanhol, mas ele se opunha, alegando que a aprovação iria gerar despesa. O deputado Evandro Araújo (PSC) fez um discurso em apoio à fala de Homero Marchese.
Conforme lembra Arnoux (2000), os espaços ocupados pelas línguas representam um lugar de conflito, onde se expressam posições políticas. Quando nós, professores, tentamos ter voz, mostrar a relevância do espanhol e do papel que desempenhamos, deparamo-nos com aqueles que compactuam com a nossa exclusão. O projeto de poder, evidenciado na Reforma no Ensino Médio, aponta que as políticas linguísticas têm representantes em todos os estados do país, não sendo restrito a uma figura executiva.
Lopes e Gregolin (2021) discorrem sobre o silenciamento que a Lei nº 13415/2017 provoca nos demais professores de “línguas estrangeiras modernas”, posto que tanto a lei quanto a BNCC trocaram esse termo por “língua inglesa”, retirando os espaços de atuação dos professores (de outros idiomas) não somente das salas de aulas, mas dos debates, da produção de livros didáticos (o espanhol foi excluído do Plano Nacional do Livro Didático) e da construção do conhecimento.
Na perspectiva de instrumentalização da língua estrangeira não há espaço para a criticidade, para a construção da identidade e da reflexão sobre questões ideológicas (Zacchi; Santos, 2018).
Arilson Chioratto (PT), que diverge da visão de imposição de um único idioma e carrega em sua bagagem o desejo de fortalecimento da América Latina, representava-nos em um lugar de poder onde ele também é minoria. Em seu momento de fala, explicou que o texto da PEC fora escrito em diálogo constante e que, se fossem necessárias, alterações seriam feitas pela comissão especial. Dessa forma, ele solicitou que os membros da CCJ votassem.
Dessa vez, o deputado Tiago Amaral (PSB), discordando das colocações de Chioratto, solicitou que se estendesse o pedido de vistas por mais uma semana, alegando que queria pensar um pouco mais antes de decidir seu voto. Tadeu Veneri, então, propôs apresentar seu voto em separado para que a PEC fosse votada nesta sessão. Nelson Justus, como presidente da sessão, encaminhou para o seu encerramento, sugerindo a discussão para a próxima reunião da CCJ.
Com esse novo obstáculo, buscamos a mediação da reitoria da UEL para o diálogo com o deputado Tiago Amaral, uma vez que ele é da região de Londrina. Também conversamos com a assessoria do deputado Evandro Araújo, esclarecendo os pontos dissonantes apresentados pelos demais parlamentares e solicitamos o apoio de Araújo.
A quarta sessão7 acreditamos ter sido a mais dolorosa para nós, professores e pesquisadores da área de ensino de língua espanhola. O deputado Tadeu Veneri havia sido bastante solícito ao encaminhar seu voto favorável em separado e fez um discurso muito contundente em defesa dessa emenda à constituição, destacou que não geraria despesa e reforçou que o texto da PEC fora redigido a partir de diálogo com o próprio secretário de Educação do Paraná. O seu voto em separado apresentava uma oposição ao voto do relator e um encaminhamento para voto “sim”. Estávamos em um grupo considerável assistindo online à sessão e comentando no chat. Também havíamos marcado intensamente os deputados nas redes sociais durante a semana.
Logo após o discurso do deputado Tadeu Veneri, o deputado Ricardo Arruda pediu a fala e solicitou vistas do voto em separado. O deputado Hussein Bakri disse que Tadeu Veneri não poderia fazer voto em separado porque ele havia assinado como coautor da PEC. Tião Medeiros se ofereceu para fazer o voto em separado, ainda assim, o deputado Ricardo Arruda, peça surpresa no tabuleiro, endossa o seu pedido de vistas. Alegou que, por ser novo na CCJ, queria entender um pouco mais da matéria e fez um discurso sem dados fundamentados, alegando que a língua espanhola não seria de relevância para a inserção dos estudantes no mercado de trabalho.
Essa manifestação do deputado, além de equivocada, representa uma visão utilitarista de língua, em que o estudante deve aprender o que “o mercado manda”, não uma língua que lhe permita desenvolver criticidade para transformar o mundo do trabalho ou se opor às injustiças que há nele. A fala de Arruda expressa o discurso neoliberal do ensino que, por sua vez, entende a Educação como uma mercadoria. Hidalgo e Vinhas (2021) explicam que um governo neoliberal prefere as línguas técnico-científicas, posto que “se identifica com a manutenção das relações de exploração capitalistas” (Hidalgo; Vinhas, 2021, p. 513).
Estávamos exaustos, prorrogaram o quanto puderam, estenderam até a quinta sessão, última permitida pelo regulamento. Se não houvesse um regulamento, provavelmente teriam adiado até passar o período eleitoral para que pudessem votar “não” sem o medo de não serem reeleitos. O fato de estarmos em período eleitoral sensibilizou, em certa medida, a opinião dos deputados.
Na quinta8 e última sessão permitida, o deputado Ricardo Arruda iniciou declarando seu voto contrário, mostrou-se bastante desinformado em relação às políticas linguísticas, principalmente na dependência dos estados em relação às leis federais.
O deputado Tião Medeiros elucidou, de modo muito didático, o valor da constituição e das propostas de emendas, e anunciou seu acolhimento ao voto do deputado Tadeu Veneri. O deputado Hussein Bakri mostrou-se favorável à admissibilidade da PEC, mas deixou claro que iria acompanhar as discussões da comissão especial. A PEC foi, enfim, aprovada, tendo como votos contrários somente os dos deputados Homero Marchese e Ricardo Arruda.
Apresentamos a descrição e a análise do processo de tramitação da PEC pela CCJ para exemplificar como as políticas linguísticas funcionam em consonância com as estruturas de poder. Quando essas estratégias entram em conflito com as políticas adotadas por um determinado governo, observamos uma relutância em aprovar leis que não estejam alinhadas com seus interesses. Como destaca Arnoux (2000, p.16): “A língua novamente surge dotada dos atributos míticos identitários e como uma construção feita a partir da política que recorta, anula ou desloca fronteiras linguísticas”9.
6.2 O decurso até a aprovação
Após a sofrida aprovação na CCJ, o documento seguiu para uma comissão especial que, obviamente, contou com representantes do governo. Alteraram nosso texto inicial e sugeriram que tirássemos “essa PEC” de votação, pois não era do interesse do governo. A liderança da situação queria retirar a palavra “matriz” de nossa proposição, ou seja, ficaria tudo como já estava, toda nossa luta teria sido inútil. A nota emitida pela Seed dia 19 de dezembro de 2019, prometendo espanhol na matriz, foi de grande valia nesse momento; tínhamos um compromisso firmado e, por 2022 ser um ano eleitoral, sentiram que era melhor honrar a palavra dada.
A PEC seguiu para votação na ALEP, fizemos um grande esforço para entrar em contato com todos os deputados e deputadas pedindo voto “sim”. Professores de Curitiba visitaram gabinetes de parlamentares, dialogamos com assessores, fizemos muitas postagens nas redes sociais, enviamos e-mails, pedimos a mediação de autoridades locais; vivenciamos um verdadeiro agir coletivo, com a participação de professores, estudantes e comunidade em geral.
Dia 05 de julho de 2023 foi a primeira votação e dia 17 de julho de 2023 a segunda. Fizemos faixas e fomos para Curitiba, marcar presença para que o voto “sim” viesse. A PEC foi aprovada!
6.3 Outros ganhos dessa luta
Enquanto articulávamos na esfera estadual, mobilizamos também os municípios. Em 2017, as professoras Amábile Piacentine Drogui e Silvana Malavasi, ambas da Unespar, tiveram uma reunião com a presidente da Autarquia municipal de Educação de Apucarana, Marli Regina Fernandes da Silva, que sinalizou a vontade da prefeitura de ofertar o idioma espanhol nas escolas. Em 2019, as professoras retomaram esse diálogo e, com o apoio do diretor de campus da Unespar de Apucarana, reuniram-se com o prefeito.
O prefeito foi receptivo e acolheu a proposta, as docentes entregaram um documento com justificativa e com o comprometimento em relação a demandas de oferta de formação para os futuros professores de espanhol que viessem a assumir aulas no município. Dia 29 de julho de 2019, o prefeito fez o anúncio público11 da inserção do espanhol no município.
Em 2020, iniciou-se essa implementação. Apesar da pandemia, os primeiros passos foram dados e hoje está presente no pré-escolar e nas cinco séries do Fundamental I. Em 2022, com o início do ano letivo na modalidade presencial, as crianças receberam material didático adquirido especificamente para o Espanhol. Os desafios agora são a abertura de Processo Seletivo Simplificado (PSS) e de concurso específico para professor de Língua Espanhola.
Em 2021, a professora Silvana Malavasi dialogou com a prefeitura de Jandaia do Sul e, em 2022, iniciou-se a implementação12 neste município, em duas escolas de período integral, como um projeto piloto, para posterior ampliação. Destacamos que Jandaia do Sul iniciou com a abertura de PSS e contratação de professor, algo muito positivo.
Em março de 2023, após uma parceria da prefeitura de Foz de Iguaçu com a Unila, o prefeito sancionou a Lei nº 5.215 que institui a obrigatoriedade das disciplinas Inglês e Espanhol na rede municipal de ensino de Foz do Iguaçu13.
O diálogo segue acontecendo com outros municípios.
7 Palavras finais
Apesar de todo esse esforço, que culminou na aprovação da PEC do Espanhol e na promulgação da emenda nº 52/2022 na constituição de nosso estado, a luta não terminou.
Como foi uma medida que contraria os projetos neoliberais do modelo de ensino adotado no estado do Paraná, bem como a própria Lei nº13.415/2017, a resistência ao cumprimento efetivo da emenda constitucional é evidenciada nas tentativas de precarizar a oferta do ensino de espanhol nas escolas.
O último concurso para contratação de professores, edital nº11/2023, não contemplou vagas para professores de espanhol. Quando questionada, a Seed nos deu respostas evasivas e, até o momento, não apresentou um planejamento para implementação da disciplina na matriz curricular do Fundamental II e do Ensino Médio, como agora determina a constituição.
A força coletiva novamente será de extrema relevância para que essa lei se cumpra. Mais uma vez temos o dever de ser agentes desse processo histórico, com a possibilidade de projetar o futuro, a partir de nossas decisões, no que diz respeito ao ensino de espanhol no Paraná. Já não podemos cometer os mesmos equívocos do passado. Se, por um lado, a Lei nº11.161/2005 levou mais de uma década para ser precariamente cumprida com a oferta obrigatória do ensino de espanhol, por outro lado, a sua retirada e a monopolização da língua inglesa nas escolas deu-se em menos de 2 anos.
A língua espanhola, praticamente 6 anos depois da reforma do Ensino Médio, resiste para sobreviver nos cenários paranaense e brasileiro, apesar da sua expressividade no contexto internacional.
Os estudos ligados à Glotopolítica reconhecem o peso ideológico presente nos cenários social, histórico e político no que se refere às escolhas linguísticas, cabendo, portanto, aos docentes, aos pesquisadores(as), em outras palavras, aos agentes de mudança, desmontar os mecanismos de subordinação impostos a determinadas línguas, em prol de um idioma hegemônico. Cabe mais uma vez nos perguntarmos: A quem interessa a imposição de um único idioma na grade curricular da Educação Básica brasileira?
RESUMO
Main Text
1 Introdução
2 Ações fundamentadas
3 Alinhamentos políticos
4 O Grupo de Trabalho Espanhol no Paraná
5 A proposição da PEC
6 Os movimentos do Movimento
6.1 A tramitação da PEC na CCJ: uma luta de Davi contra Golias
6.2 O decurso até a aprovação
6.3 Outros ganhos dessa luta
7 Palavras finais