in Domínios de Lingu@gem
Os coices triunfais do Narciso às Avessas: uma análise discursiva da ideologia do viralatismo em comentários de perfis jornalísticos nas redes sociais
Abstract
RESUMO: O brasileiro é um “Narciso às avessas, que cospe na própria imagem” (RODRIGUES, 2013). Com essas palavras, Nelson Rodrigues descreve o “complexo de vira-lata”, caracterizado como uma postura voluntária de autodepreciação comum a setores da sociedade nacional, que se assenta em uma visão ideológica negativa em relação ao Brasil. Partindo da intuição arguta do autor recifense, o objetivo precípuo deste artigo é gerar entendimentos sobre a ideologia do viralatismo conforme construída discursivamente em comentários de perfis jornalísticos nas redes sociais. Para tanto, com base na concepção de ideologia sistematizada por Thompson (1995) como o “sentido a serviço do poder”, mobiliza-se um arcabouço teórico constituído pela visão rodrigueana sobre o pessimismo crônico brasileiro e o modelo de linguagem preconizado pela Linguística Sistêmico-Funcional. As análises realizadas, orientadas pelo Sistema de Avaliatividade (MARTIN; WHITE, 2005), evidenciam o papel desempenhado pelos elementos avaliativos na materialização discursiva do viralatismo nos comentários examinados, além de flagrarem nessa ideologia um fio-guia que perpassa todos os expedientes discursivos de desapreço, pessimismo e ódio em relação ao Brasil.
Main Text
1 Introdução
“O subdesenvolvido faz um imperialismo às avessas. Vai ao estrangeiro e, em vez de conquistá-lo, ele se entrega e se declara colônia” (RODRIGUES, 2013, p. 15); “admiramos mais os defeitos dos ingleses do que as virtudes brasileiras” (RODRIGUES, 2013, p. 98). As palavras destacadas, retiradas de algumas das crônicas futebolísticas compostas por Nelson Rodrigues, tinham como alvo mais direto os comentaristas esportivos de seu tempo, vistos pelo mestre recifense como injustamente críticos em relação ao escrete nacional e excessivamente admiradores do futebol praticado pelas demais seleções. Para Nelson, tais jornalistas, vítimas frequentes de triunfais do sua escrita, seriam acometidos psicológica e espiritualmente pelo “complexo de vira-lata” (RODRIGUES, 2013), uma inclinação voluntária a colocar-se em posição de inferioridade perante o resto do mundo.
Apesar de o termo complexo de vira-lata fazer uma alusão clara à psicanálise (com seus complexos de Édipo e Electra), não nos interessa neste artigo mergulhar na psique coletiva do brasileiro - pelo menos, não de maneira direta. Interessa-nos aproveitar a categorização de Nelson Rodrigues como um tropo capaz de flagrar, em meio à miríade de discursos que perpassa a nossa sociedade, um quadro ideológico que incorpora os atributos fundamentais do vira-lata rodrigueano: um pessimismo generalizado perante Brasil e uma postura de inferioridade em relação às demais nações. Emprega-se aqui, portanto, a noção de complexo de vira-lata de maneira metafórica, entendendo-a como uma ideologia, isto é, uma cosmovisão que, implicitamente, tende a orientar nossos discursos e avaliações sobre o mundo (FAIRCLOUGH, 1989). Como resultado, o termo viralatismo terá predileção neste escrito por sua dupla virtude: além de seu sufixo (-ismo) evidenciar a natureza ideológica da esfinge em tela, sua referência ao vira-lata consagrado por Nelson Rodrigues dá o devido crédito à intuição do dramaturgo pernambucano.
Explicitado o objeto de interesse deste artigo, podemos apresentar seu objetivo principal: gerar entendimentos sobre a materialização discursiva da ideologia do viralatismo em comentários realizados em perfis jornalísticos em uma rede social. Emprega-se como ferramental de análise dos dados em tela o Sistema de Avaliatividade (MARTIN; WHITE, 2005), ramo sobressalente da Linguística Sistêmico-Funcional (HALLIDAY, 1994). A escolha desse instrumento tem como fundamento o modelo teórico avançado por Bakhtin (2010), que preconiza uma imbricação primordial entre ideologia e axiologia em nossos enunciados, entendendo, assim, a faceta avaliativa do nosso discurso como um meio de produção ideológica.
A seleção do loco para a aquisição dos dados não é arbitrária nem fortuita. Ela é produto do alinhamento deste artigo à visão advogada por Boito Jr (2016) e Schommer (2012), que percebem o ataque ideológico à identidade de um povo, inscrito na noção de nacionalidade, como uma arma política utilizada por grupos de interesse organizados para a apropriação das riquezas pertencentes à coletividade sem a devida resistência. Assim como o chauvinismo pode ser instrumentalizado com o fito de oprimir franjas marginalizadas da sociedade, a estigmatização da nação e do pertencimento a uma entidade nacional também pode ser operada no sentido de fragilizar os vínculos que unificam a sociedade, tornando tais setores mais vulneráveis à rapina de grupos econômicos. O raciocínio é simples: quem despreza sua nação e rejeita seu pertencimento a ela, jamais lutará pela salvaguarda de seus recursos.
Como Boito Jr (2016) e Amorim (2015) assinalam, a mídia hegemônica é a plataforma comunicativa que expressa os desideratos das oligarquias dirigentes do país, cujos interesses se entrelaçam ao processo de globalização financeira, sendo a existência de certas instituições nacionais um obstáculo ao espraiamento do seu poder. À luz desses apontamentos, podemos considerar os perfis jornalísticos dos grandes conglomerados midiáticos do país uma usina de discursos que, das mais distintas maneiras, materializem ideias integradas à cosmovisão do viralatismo. Contudo, o interesse deste estudo concentra-se na reverberação de tal produção discursiva no público que acompanha tais portais jornalísticos. Uma forma eficiente de flagrar esses ecos ideológicos plasmados em discurso é o escrutínio dos comentários realizados por seguidores desses perfis nas próprias redes sociais, interagindo com notícias publicadas por essas páginas.
Este artigo está estruturado da seguinte maneira. Após esta introdução, esmiuça-se conceitualmente a noção de ideologia para, em seguida, discutirmos o esquema ideológico específico a nos interessar aqui: o viralatismo. Adiante, o ferramental analítico ora empregado, o Sistema de Avaliatividade, é iluminado. Na quinta seção, os dados coletados a partir dos perfis jornalísticos hospedados no Instagram® são submetidos a exame, com o emprego do instrumental analítico destacado. Por fim, algumas considerações e reflexões derradeiras acerca dos conhecimentos gerados ao longo do estudo são explicitadas.
2 O sentido a serviço do poder: o arcabouço teórico da ideologia
A primeira tentativa de entabulação sistematizada do conceito de ideologia remete ao pensamento marxiano. Partindo da concepção do materialismo histórico que entende a sociedade como um produto do choque agonístico entre as classes sociais, Marx e Engels (1999) percebem a ideologia como uma forma alienada de representação do mundo, via de regra, impulsionada pela rejeição do dado de realidade fundamental que repousa no conflito entre proletariado e burguesia. Sendo aquele o portador histórico dos valores capazes de liderar a humanidade ao progresso, o discurso ideológico tende a perfilhar a cosmovisão alienada da classe burguesa, sendo, portanto, um modelo de inteligibilidade sobre o real orientado politicamente para resguardar a posição de poder desse grupo.
Em linha com a centralidade do conceito de ideologia para o sistema teórico do materialismo histórico, inúmeros epígonos do marxismo se debruçaram sobre a noção em tela. Habermas (1997) pensa a ideologia como uma dimensão de símbolos que, ao emergir na arena social, distorce e embarga o processo comunicativo. O âmbito ideológico da vida humana representa, assim, uma forma específica de racionalidade que se coloca como obstáculo ao fluir dialógico inerente ao debate na esfera pública. Outro pensador de proa no ecossistema marxista do século XX, Althusser (1985), advoga uma visão mais ampla e aprofundada da categoria em destaque. Para o pensador francês, a ideologia é o nível simbólico da experiência humana. Portanto, antes de consignar um tipo específico de discurso ou representação, o âmbito ideológico perpassa a estadia do sujeito no mundo, inscrevendo-se em todas as vivências em sociedade.
Dois problemas importantes estiolam o modelo teórico construído pelos epígonos do marxismo para o fenômeno da ideologia. Primeiramente, distinguir entre duas naturezas de discurso (ideológico e não-ideológico) significa estabelecer uma relação de transparência entre a palavra e a realidade, como se certos tipos de enunciados representassem de maneira pari passu a constituição do real. Ademais, estabelecer um critério político como diapasão para classificar a ideologia implica em reduzir a discussão em torno desse conceito ao debate político de momento, considerando-se que cada grupo político em disputa reivindicará o posto de portador do discurso não-ideológico.
Em face das limitações, torna-se necessário buscar um melhor tratamento teórico para essa esfinge. Thompson (1995, p. 6), pensador britânico, caracterizou a ideologia como “o sentido a serviço do poder”. Mesmo entendendo o horizonte de operação da ideologia de modo mais amplo que a sua vinculação à concepção marxista ortodoxa de classe social, o autor atribui ao elemento ideológico um papel de centralidade na construção e na manutenção de relações de dominação. Assim, Thompson estabelece uma distinção entre o símbolo e a ideologia: o primeiro se converte na segunda no momento em que a matriz simbólica é usada como uma ferramenta de poder.
Giddens (2009), outro pensador insular, teoriza a ideologia em linhas semelhantes à visão de Thompson. Para o autor, não existe uma identidade entre o simbólico (forma mais ampla de se entender o sentido) e o ideológico, mas sim uma subserviência deste àquele: a ideologia é o símbolo organizado com o fito de legitimar relações de dominação. Com base nesse entendimento, o sociólogo (2009) cunha sua definição para a ideologia, entendendo-a como o modo a partir do qual as formas de significação são incorporadas em sistemas de dominação com o objetivo de patrocinar a sua continuidade.
Seguindo a mesma linha teórica de Thompson e Giddens, Fairclough (1989) aprofunda a reflexão sobre a ideologia à luz de uma perspectiva discursiva. Através de tal ponto de vista, o pensador assinala um aspecto central da operação da ideologia: seu caráter implícito e subjacente. Nesse sentido, a teorização faircloughiana subscreve tanto à visão da ideologia como um âmbito do simbólico, quanto ao papel central desempenhado pela ideologia na construção e manutenção de relações desiguais de poder. Porém, o autor adiciona outra propriedade importante da ideologia: sua função emoliente na engrenagem da dominação. O discurso ideológico não ambiciona violentar diretamente o assujeitado ou declarar a sua condição de servidão. Pelo contrário; sua função é ocultar a situação política não-isonômica a que os setores majoritários da sociedade estão submetidos, valendo-se dos expedientes de sentido mais variados para tal mister. Portanto, para Fairclough (1989), o poder ideológico reside no condão de construir consenso em torno de relações de poder e exploração.
Para obter sucesso em seu intento, o elemento ideológico necessita dispor de um caráter subterrâneo, funcionando como um sistema de premissas fundamentadoras dos mais variados modelos discursivos. Logo, a ideologia, segundo o olhar faircloughiano, repousa nas diferentes matrizes simbólicas que, de maneira implícita, sustentam e dão legitimidade a um determinado projeto de poder. Outro atributo importante da ideologia é sua aquosidade nos discursos. Ainda que um arcabouço ideológico tenda a ser representado como uma doutrina que opera simbolicamente abaixo da linha d’água do discurso, seu objetivo é contaminar os enunciados e se fazer disseminar como um parasita em um hospedeiro, isto é, usando o falar e o escrever dos indivíduos como excipiente.
À luz do quadro teórico compilado nos parágrafos anteriores, podemos compor o alicerce conceitual que entabula a esfinge de nosso interesse. A ideologia é um sistema de ideias que compõe uma cosmovisão sobre o real (ou setores dele), que, de maneira implícita e cogente (funcionando como premissa), tem a função de criar consenso e legitimidade para um determinado interesse de poder de um dado grupo político ou indivíduo. Essa visão de mundo pode se apresentar tanto de modo holístico, aos moldes de uma filosofia, ou de forma parcial, tendo seu enfoque reduzido a um determinado flanco da realidade, porém sendo potencialmente expansível a outras dimensões mais amplas da vida humana. Ademais, apesar de se organizar de uma maneira eminentemente lógica, as diferentes matrizes ideológicas podem conviver com incoerências e conflitos internos, pois seu objetivo fundamental não é defender uma tese verdadeira acerca de algum fenômeno, mas viabilizar e legitimar uma relação de poder. Portanto, sendo necessário incorrer na defesa de ideias conflitantes entre si como um meio de garantir a legitimidade de um dado projeto político, cabe ao discurso ideológico acomodar-se a tais contradições.
A definição trazida no parágrafo anterior evidencia uma propriedade fundamental da ideologia: sua ubiquidade, ou seja, seu condão de estar, latente ou patente, inscrita em todos os discursos e acessível a todas as vozes. Aqui temos uma divergência clara em relação à visão promulgada pelo marxismo ortodoxo. A ideologia não é uma ferramenta simbólica de uso exclusivo da burguesia ou do estamento dominante, mas é um recurso que pode ser utilizado por qualquer indivíduo, de forma consciente ou não. Ainda que as grandes usinas produtoras de matrizes simbólicas de potencial político (ideologias) sejam organizações e instituições a serviço das franjas mais poderosas da sociedade, seria ingênuo e alienado pensar que os grupos oprimidos ou ocupantes de posições sociais menos privilegiadas não sejam capazes, eles próprios, de erigir suas próprias matrizes ideológicas ou se apoderar de ideologias existentes para a defesa de seus objetivos. Entender o jogo ideológico como uma via unilateral em que apenas um lado é politicamente ativo enquanto os demais grupos são passivamente dominados não é apenas uma visão simplista, mas é também um meio de gerar conformismo e inanição.
Entabulados os fundamentos teóricos da noção de ideologia, na seção seguinte, olhamos para um exemplar de matriz ideológica, o viralatismo.
3 O Complexo de Vira-lata como doutrina: a ideologia do viralatismo
O termo viralatismo advém da metáfora do complexo de vira-lata, consagrada por Nelson Rodrigues (2013) e definida pelo dramaturgo como “a inferioridade em que o brasileiro se coloca voluntariamente em face do resto do mundo” (RODRIGUES, 2013, p. 80). Apesar de uma conceituação vaga acerca da formação psicológica do brasileiro, a categoria tornou-se um cânone, merecendo inúmeros estudos dedicados a devassar esse traço da brasilidade anunciado pela pena rodrigueana à luz das mais variadas matrizes teóricas.
Tiburi (2021), olhando por uma lente que flerta frouxamente com a psicanálise, associou o complexo de vira-lata brasileiro a um sentimento de bastardia e desidentificação. Vendo-se como não-africano, não-europeu e não-indígena, o vira-lata se encontraria em um não-lugar de identidade, como um povo “chutado de outros lugares” (TIBURI, 2021, pg. 116). Souza (2013), partindo de uma visão teórica similar, inverte o sentido da metáfora rodrigueana. Para o autor, o aspecto vira-lata da personalidade coletiva nacional merece ser celebrado, não combatido. O trânsito do brasileiro pelos entrelugares, sua instabilidade identitária e sua maleabilidade em face de outros povos seriam virtudes comuns a uma coletividade que não absorveu de maneira tão profunda o cabedal de ideias rígidas cunhado pelo ocidente.
Orientado por uma verve política distinta, Schommer (2012) percorre a trajetória da nação brasileira em busca de eventos marcantes e constantes históricas que justifiquem o sentimento de autodepreciação reinante no Brasil. Participação do tronco indígena e negro na formação do povo, papel da mestiçagem, subdesenvolvimento e legado lusitano: esses são alguns dos temas devassados pelo autor no afã de encontrar em interpretações simplistas e moralistas de tais fenômenos a causa subjacente do pessimismo congênito que caracteriza o brasileiro.
Diferente das empresas de geração de conhecimento listadas nos parágrafos anteriores, neste artigo, concebe-se o complexo de vira-lata como uma ideologia, isto é, como um sistema simbólico que ancora uma cosmovisão específica e que funciona como premissa para uma miríade de discursos empregados a serviço de certos projetos de poder. Não tratamos aqui, portanto, de um complexo de vira-lata, mas de um viralatismo, sendo o sufixo -ismo revelador do caráter ideológico do fenômeno em lente.
O primeiro passo para caracterizarmos o viralatismo como uma ideologia é destrinchar sua estrutura simbólica enquanto um sistema de ideias. Partindo da metáfora rodrigueana, pode-se concluir que o complexo de vira-lata tem como seu fundamento a alegada inferioridade absoluta do Brasil (e de tudo que remete à brasilidade) em face das demais nações, que fomenta um sentimento de desgosto do brasileiro em relação ao seu país e, por sua vez, uma admiração desmedida perante o estrangeiro: “admiramos mais os defeitos ingleses que as virtudes brasileiras” (RODRIGUES,2013, p. 98).
Como argutamente apontado por Schommer (2012), o sentimento de inferioridade congênita do brasileiro se desdobra em uma interpretação fatalisticamente depreciativa de sua história, caracterizando-a como o retrato de uma nação fracassada. Nesse aspecto, sobejos são os exemplos de teorizações sobre o fracasso do Brasil, que escavam a história nacional como exorcistas escavam um cemitério em busca de marcas de uma maldição. Raymundo Faoro (2012), por exemplo, atribui nosso estado de subdesenvolvimento quando comparados às nações mais ricas do Atlântico Norte à supremacia histórica de um estamento político privilegiado sobre o restante da sociedade. José Murillo de Carvalho (2004), em outra comparação explícita com a Inglaterra, encontra na tutela do Estado sobre a vida e a ação política da sociedade civil organizada (chamada de estadania) a chave para nossa debacle civilizacional.
Além da leitura do passado brasileiro como um documento do nosso fracasso, a crença na superioridade do estrangeiro possui outro desdobramento cogente: uma visão pessimista em relação ao futuro. Temos, assim, os três pilares conceituais da ideologia do viralatismo: 1) a ideia da inferioridade do Brasil em face das demais nações (que se transforma em uma visão depreciativa do país de maneira absoluta); 2) o entendimento da história do Brasil como uma sucessão de erros e vícios, que justificariam o fracasso nacional no presente; 3) um olhar derrotista em relação ao futuro do país.
Além de gozar de um sistema de ideias ordenado a partir de preceitos lógicos que se desfolham em uma constelação de subsistemas, o viralatismo também se caracteriza como uma ideologia por conta de seu caráter implícito e subterrâneo. Inúmeros são os trabalhos no campo das ciências humanas que tratam esse fenômeno como um traço latente da vida social brasileira, patenteado constantemente no discurso científico, midiático e comezinho acerca do país. Morais (2019), por exemplo, atribui a presença do complexo de vira-lata no imaginário compartilhado do brasileiro ao predomínio de uma mentalidade colonizada, orientada por comandos do Norte Global. Homero Junior (2017), por sua vez, flagra a inserção da ideologia do viralatismo não apenas nas construções discursivas acerca do Brasil, mas também na própria forma da linguagem, saturada de estrangeirismo inseridos na língua portuguesa com o intuito de adorná-la. Temos, portanto, um quadro de estudos que evidenciam o caráter subterrâneo do viralatismo, cuja presença simbólica pode ser notada acima da linha d’água do discurso somente mediante um esforço de escavação de sentidos.
Por fim, a caracterização do viralatismo como uma entidade ideológica passa pela explicitação de sua função na salvaguarda e na legitimação de interesses de poder. Como Schommer (2012) assinala, a consequência mais imediata do alinhamento às premissas do viralatismo é o enfraquecimento do sentimento de pertença a uma nacionalidade e de identificação com um povo. Como desdobramento lógico, alguém que não se vê como brasileiro dificilmente se ofenderá pela rapina do patrimônio nacional comum e nem moverá esforços para lutar por agendas comuns à coletividade. Sendo as sociedades organizadas em nações, o viralatismo ataca justamente o arcabouço de laços simbólicos que sustentam essa estrutura social. Certamente, os grupos que ocupam uma posição oligárquica em relação ao restante do país e se beneficiam da exploração privada dos recursos comuns têm todo interesse de garantir que as multidões que formam as fileiras nacionais não se sintam donas do Brasil, não se vendo, assim, lesadas pela apropriação indébita de riquezas por essa franja.
Ademais, entender os problemas da nossa sociedade como fruto de vícios fundantes e congênitos do país demove os brasileiros de procurarem por agentes causadores dessas disfuncionalidades, busca que apontaria para o grupo dominante responsável pela disseminação dessa ideologia de desgosto perante o Brasil. Por fim, o sentimento de inferioridade perante as nações poderosas do Atlântico Norte propalado pelo viralatismo cria terreno fértil para a aceitação de políticas de cunho imperialista, que passam a ser vistas como ventos de civilização em vez do que de fato são: expedientes de rapina e submissão dos povos colonizados do Sul Global (BOITO, 2016).
Em face dos apontamentos listados nos parágrafos anteriores, torna-se evidente a caracterização do viralatismo como um esquema ideológico, gozando de sentido político, força de premissa, caráter implícito e sistematização enquanto uma rede de ideias. Porém, realizada a sua conceituação, ainda nos falta compreender de que maneira essa ideologia deságua em nossos discursos corriqueiros, ou seja, como ela opera enquanto uma força de sentido a serviço do poder (THOMPSON, 1995).
Thompson (1995) assinala uma série de modos predominantes de operação da ideologia no discurso, isto é, maneiras estratégicas como o sistema de premissas e ideias ordenado na ideologia se converte em uma força discursiva (semântica, retórica, argumentativa, etc.). Dentre estas, ganham relevo em nossa tentativa de entendimento do viralatismo algumas estratégias. Dentro da categoria denominada de legitimação, a racionalização e a universalização são táticas empregadas amiúde pelo discurso contaminado pela doutrina do vira-lata. A racionalização consiste no próprio modus operandi da ideologia, criando relações lógicas entre premissas e consequências a partir da manipulação de dados e variáveis. Dá-se, por meio dessa tática discursiva, um verniz de racionalidade àquilo que é apenas um formalismo lógico, desprovido de qualquer método que garanta o mínimo de validade para tais conclusões. Por sua vez, a universalização consiste na transformação de eventos ou tendências fortuitas e contingentes em leis universais. Toma-se, por exemplo, um evento negativo ou um momento de derrota pontual na história de uma nação e transforma-se tal desventura em um sintoma de fracasso mais amplo e profundo do país.
Outra categoria assinalada por Thompson (1995), unificação, nos oferece mais uma tática importante para compreendermos a materialização da ideologia do viralatismo em discurso. Esta é a estandardização, que consiste na homogeneização de um grupo, apagando seus pontos de contraste e distinção e buscando atribuir a essa totalidade artificial virtudes ou vícios de caráter absoluto. É assim, por exemplo, que um país heterogêneo e repleto de particularidades regionais torna-se subitamente uno sob a égide de discursos depreciativos, que buscam expressar falhas ou defeitos congênitos comuns a toda a sociedade brasileira.
Além das categorias ofertadas por Thompson, o viralatismo brasileiro possui certas especificidades que requerem estratégias de derramamento discursivo não teorizadas ou sistematizadas pelo pensador britânico. Assim, três outras táticas nos são úteis: dicotomização, alienação e sinédoque pragmática. Partindo da intuição de Nelson Rodrigues, que vê o complexo de vira-lata, antes de tudo, como um esforço de comparação entre o Brasil e as demais nações do planeta, tal cotejamento tende a ser operado discursivamente a partir de uma lógica de dicotomização, ou seja, de separação irreconciliável entre os elementos comparados. Assim, o Brasil é transformado em categoria absoluta, cujo vício representa um polo inverso às virtudes de outros países.
Outra tática importante de construção discursiva da ideologia em tela reside na alienação. Ao colocar-se em uma posição externa como crítico dos vícios absolutos da sociedade brasileira, o disseminador da ideologia do viralatismo se separa dessa coletividade corrompida, empreendendo uma espécie de autopurificação em face aos defeitos do brasileiro. É, portanto, uma forma de expiação que confere ao agente promotor de tal discurso condão de segregar-se do restante do país em uma posição de diferenciação positiva.
A última tática amiúde empregada na construção discursiva da ideologia que nos interessa é a sinédoque pragmática. Sinédoque denomina uma figura de linguagem similar à metonímia, que consiste no embaralhamento das relações entre todo e parte. Tal mecanismo semântico é empregado na expressão do viralatismo de maneira pragmática, com um objetivo duplo: por um lado, qualificar todos os aspectos negativos observáveis na realidade brasileira como representativos do todo nacional; por outro lado, caracterizar todo aspecto positivo presente na vida do Brasil como produto da ação de algum determinado grupo que, de modos diversos, se distingue do espírito da brasilidade - como uma parte estranha de um organismo. Assim, os defeitos de grupos do país caem na conta de sua totalidade e os acertos, feitos e virtudes pertencem a facções, setores, grupos, franjas sociais, regiões, influências externas, etc.
Apresentadas as estratégias discursivas empregadas com o objetivo de inscrever a ideologia do viralatismo nos nossos enunciados, na seção seguinte, exponho as bases do Sistema de Avaliatividade, ferramental que, ao lado das categorias já discutidas, servirá como instrumento de análise dos dados de interesse deste artigo.
4 Sistema de Avaliatividade: uma ferramenta de análise da avaliação na linguagem
O Sistema de Avaliatividade (doravante SA) é um ferramental desenvolvido para o mapeamento e a análise linguística dos expedientes avaliativos oferecidos por cada língua para os seus falantes cunharem juízos sobre o mundo. O SA nos apresenta uma cartografia didática dos recursos axiológicos da linguagem, nos ajudando a entender a função e o significado dos construtos de valor em nossas interações.
Do ponto de vista teórico, o SA está integrado ao arcabouço mais amplo da Linguística Sistêmico-Funcional (HALLIDAY, 1994), uma concepção de linguagem que se assenta numa visão sociossemiótica da língua, ou seja, que entende que os significados materializados pelos enunciados fundamentam a ação do sujeito em sociedade. Os dois adjetivos que qualificam a concepção linguística em tela, sistêmica e funcional, evidenciam o modelo conceitual e analítico nela inscrito.
Para os partidários do modelo hallidaiano, a linguagem é sistêmica por ela viabilizar aos falantes da língua um sistema de escolhas linguísticas sintagmáticas (formas possíveis de articulação entre as unidades linguísticas) e paradigmáticas (escolhas lexicais e gramaticais possíveis para desempenhar cada função sintática prevista naquela língua). Da mesma forma, ela é funcional por entender que esse sistema linguístico não existe de maneira arbitrária ou ociosa, mas tem sua estrutura e sua própria existência vinculada à realização de funções inerentes às línguas humanas. Tais funções, ainda que complexas e diversas, podem ser sintetizadas em três metafunções fundamentais: converter a experiência humana em ideias comunicáveis (metafunção ideacional), mediar as trocas interacionais e a ação social no mundo (metafunção interpessoal) e organizar a mensagem de acordo com padrões de clareza e economia de modo a torná-la mais facilmente transmissível e decodificada pelos interagentes (metafunção textual) (HALLIDAY, 1994).
A Linguística Sistêmico-Funcional oferece ao analista linguístico uma miríade de sistemas linguísticos que o permitem dispor de uma visão organizada da estrutura linguística, auxiliando-o a mapear as diferentes formas como cada língua realiza as três metafunções que constituem o seu arcabouço sistêmico e funcional. Essa rede de categorias e balizamentos teóricos emerge como um recurso de grande valor para os estudos de natureza discursiva e, mais detidamente, para os estudos sobre a ideologia. Em primeiro lugar, esses instrumentos teórico-analíticos iluminam certos processos semânticos e formais que podem gozar de relevo para alguma análise de caráter discursivo - como, no exemplo da presente pesquisa, o papel da avaliação na construção da ideologia do viralatismo. Ademais, o olhar mais aprofundado e sistematizado viabilizado pelas lentes da Linguística Sistêmico-Funcional alarga o horizonte de percepção do analista, abrindo caminhos para perceber novos sentidos discursivos em certas construções linguísticas.
Dentro do arcabouço de sistemas da Linguística Sistêmico-Funcional, o SA opera no nível da Semântica do Discurso, nível de organização dos significados da linguagem. O SA também está estratificado em três subsistemas: Gradação, Engajamento e Atitude, sendo este último empregado nesta análise.
O Subsistema de Atitude classifica e mapeia os expedientes oferecidos pela língua para transformar em palavras os significados avaliativos, ofertando três categorias que buscam contemplar as diferentes possibilidades de valoração: Afeto, Julgamento e Apreciação. O Afeto representa e categoriza as construções avaliativas ancoradas no emprego de termos ou expressões inscritas no universo semântico da afetividade humana. Quando digo, por exemplo, eu amo chocolate ou eu odeio esse ator, além de expressar um sentimento acerca de um elemento do mundo, eu o avalio através de tal construto discursivo.
A categoria de Julgamento, por sua vez, diz respeito às valorações erigidas no domínio da ética e da moralidade. Tal região axiológica cartografa as avaliações que operam a partir de dicotomias como certo-errado, justo-injusto, bom-mau etc. Quando digo você é um péssimo pai ou sua postura está completamente errada, avalio meu interlocutor com base em um diapasão moral, direcionando meu escrutínio à faculdade do juízo do sujeito em tela.
Finalmente, a categoria da Apreciação concerne às valorações linguísticas produzidas no domínio semântico da estética e da forma, articulando ideias como bonito-feio, perfeito-imperfeito etc. Portanto, ao dizer que livro feio ou esta é uma bela obra de arte, edificamos uma valoração da realidade que se insere no terreno da Apreciação.
Neste artigo, o SA será empregado como um instrumento de análise das distintas maneiras como o viralatismo se materializa nos dados esmiuçados pela via da avaliação. Como veremos em detalhe na seção seguinte, nos dados angariados neste estudo, tais expedientes avaliativos tendem a se organizar em torno de sintagmas nominais, isto é, frases que exercem funções sintáticas características de um substantivo. Portanto, ao longo do esforço analítico, o emprego das categorias do SA terá seu foco na carga valorativa inscrita nesses construtos e no papel por eles desempenhado na instanciação discursiva do viralatismo.
Considerando o caráter depreciativo dessa ideologia a todos os elementos que se associam ao Brasil, dispor de categorias semântico-discursivas que nos permitam flagrar e caracterizar na concretude dos enunciados as diferentes facetas desses expedientes valorativos nos ajuda a entender esse processo de materialização da ideologia em discurso. Assim, mais importante do que apenas caracterizar os diferentes expedientes de avaliação é devassar seu significado, isto é, explicitar sua função para a construção em palavras da ideologia do viralatismo.
5 Análise dos dados: o viralatismo inscrito em comentários de perfis jornalísticos nas redes sociais
Este artigo está integrado a um projeto de pesquisa cujo objetivo é mapear as diferentes manifestações discursivas do viralatismo em distintas plataformas midiáticas nacionais - seja a partir da voz oficial desses veículos de mídia, seja a partir dos comentários de seguidores de tais páginas virtuais. A rede social escolhida para a geração dos dados foi o Instagram®. Tal decisão teve como justificativas a fluidez interacional permitida pela seção de comentários da plataforma e o engajamento que as páginas de notícias dos maiores veículos da mídia hegemônica nacional têm na referida rede.
Com base no levantamento dos 20 portais mais acessados de 2022 realizado pelo sítio virtual Comscore®, foram selecionados como escopo da pesquisa os quatro veículos jornalísticos que tiveram a maior visibilidade nas diferentes plataformas virtuais: G1, Metrópoles, R7 e UOL. Os quatro portais hospedados no Instagram® compartilham o mesmo método de divulgação das matérias jornalísticas: uma postagem é realizada com uma foto que remete ao conteúdo da notícia acompanhada do link que transfere o leitor para o sítio oficial do veículo. É justamente nessa postagem feita no Instagram que os comentários dos leitores e seguidores do perfil podem ser adicionados. Estes, via de regra, se relacionam com o conteúdo da notícia publicada, repercutindo a manchete adjacente, a imagem postada ou alguma informação específica do texto.
Três foram os critérios empregados na seleção dos comentários a serem esmiuçados neste esforço analítico. O primeiro deles foi a delimitação cronológica. Considerando o volume gigantesco de postagens realizadas por esses perfis midiáticos no Instagram, foi adotada uma janela temporal limitada, abrangendo as matérias hospedadas no perfil durante os meses de janeiro e fevereiro de 2022. O segundo critério foi a convergência temática dos comentários vis-à-vis aos interesses do estudo. Assim, mensagens que não reverberassem elementos relacionados à ideologia de interesse da pesquisa foram sumariamente descartadas. Por fim, observou-se o critério da densidade avaliativa. Partindo do caráter eminentemente depreciativo do viralatismo em relação a tudo que remete à brasilidade, a gradação da valoração negativa dirigida ao país em todos os seus aspectos foi levada em conta na seleção dos comentários. Portanto, manifestações discursivas carregadas de maior peso negativo tiveram primazia em relação a opiniões mais moderadas ou temperadas.
Os dados selecionados com base nos critérios expostos no parágrafo anterior serão escrutinados com base em dois ferramentais analíticos: as estratégias de materialização das ideologias em discurso inventariadas por Thompson (1995), com o incremento das táticas entabuladas neste estudo, e as categorias pertinentes ao Sistema de Avaliatividade (MARTIN; WHITE, 2005). Com o apoio de tais expedientes, buscar-se-á gerar inteligibilidade sobre a inscrição da ideologia do viralatismo nos construtos discursivos postos em lente.
A primeira postagem jornalística no Instagram cujos comentários serão analisados tem a seguinte manchete: Brasileira que participou da invasão no capitólio é presa nos EUA. Essa notícia foi veiculada pelo portal do UOL em parceria com a Folha de São Paulo, não havendo informação disponível sobre sua autoria, por se tratar de um vídeo. A imagem (imagem 1) que acompanhava a postagem encontra-se abaixo:
A manchete e o vídeo por ela anunciada, apesar de tratarem de um crime cometido por uma brasileira, não adotam explicitamente um tom crítico ao Brasil, nem generalizam o ato da migrante detida nos EUA. Contudo, uma série de comentários realizados em resposta à postagem se valem do malfeito empreendido por uma nacional para produzirem uma série de extrapolações e generalizações acerca do povo brasileiro, incorporando em seus discursos algumas das premissas fundamentais do viralatismo. A primeira delas, já anunciada de maneira temporã por Nelson Rodrigues, é o afã de comparar de forma depreciativa o Brasil com as nações desenvolvidas do Norte do planeta. Vejamos o seguinte comentário (imagem 2):
No comentário em destaque, testemunhamos uma instanciação discursiva de um dos princípios mais importantes da ideologia que nos interessa: a inferiorização do país perante o estrangeiro. Além da construção de uma imagem comparativa que nos coloca em eminente desvantagem, o breve texto também materializa outro pilar ideológico do viralatismo: a noção do Brasil como um fracasso. Afinal, a expressão terra de ninguém é empregada de maneira corriqueira como uma metáfora para definir locais e espaços sociais em que reina a desordem, a barbárie e o caos. Logo, a terra de ninguém é um território de falência social, em que os mínimos padrões de civilidade se mostram ausentes, sendo tal representação do país um libelo ao vira-lata rodrigueano.
Como assinalado por Thompson (1995), os sistemas ideológicos se inscrevem na linguagem a partir de mecanismos discursivos que operam a transformação dessas premissas subjacentes em enunciados patentes. Duas são as estratégias de materialização ideológica observadas de forma mais candente no comentário em destaque: dicotomização e a estandardização. Estas, apesar de representarem movimentos semânticos distintos, trabalham de maneira entrelaçada na produção do sentido político (qualificação depreciativa do Brasil e dos brasileiros) explicitado no apontamento. Por um lado, a caracterização do Brasil como terra de ninguém a partir de um ato condenável de uma brasileira implica em duas generalizações radicais. A primeira é a classificação desse tipo de atitude criminosa descrita na matéria como uma regra em nosso país; como se comportamentos de tal índole fossem representativos do modo de ser e agir do brasileiro. A segunda é a generalização em torno do (não) funcionamento dos sistemas jurídicos brasileiro e estadunidense. Enquanto este é pintado com cores idealizadas, como um símbolo da eficiência na implementação da lei e na garantia da ordem, aquele emerge como o epítome da ineficiência e da impunidade, sendo apresentado como antônimo de seu correlato estrangeiro.
Tais expedientes de estandardização tornam possível a dicotomização estabelecida de maneira explícita entre as instituições organizadoras da sociedade brasileira em face de suas análogas estadunidenses e também da polarização ideológica constituída de maneira mais discreta entre o povo brasileiro, representado pelo ato criminoso da migrante detida, e as populações de outras nações. Enquanto a imagem metafórica da terra de ninguém é apresentada como um símbolo da nossa vida coletiva no Brasil, a prisão sumária da invasora do capitólio serve de base simbólica para a comentadora construir os Estados Unidos como um contraponto ideal ao cenário de caos em nosso território. Há, portanto, uma relação de retroalimentação e complementariedade entre ambas as táticas empregadas no esforço de caracterização do Brasil como uma nação falida socialmente e inferior às demais.
Ademais, a dicotomização entre ambos os modelos antagônicos de civilidade (a terra de ninguém brasileira e a ordem institucional estadunidense) é ainda reforçada pela alusão do comentarista a uma suposta confusão feita pela brasileira detida entre ambos os países. Assim, a prisão da criminosa teria sido fruto de sua má avaliação em relação ao sistema jurídico estrangeiro, eficiente e organizado, tendo tomado a institucionalidade brasileira, caótica e ineficaz, como diapasão para a consecução dos seus atos.
Do ponto de vista axiológico, o comentário em lente emprega uma expressão de caráter pejorativamente negativo para qualificar o Brasil. É importante assinalar que o esforço de generalização inscrito no movimento discursivo do seguidor possui não apenas um sentido semântico de ampliação do escopo de suas ideias, mas também avaliativo, pois estende uma avaliação que, em tese, teria como objeto o sistema jurídico nacional para a totalidade do país e de seus elementos constitutivos. O termo terra de ninguém explicita uma valoração propalada na região do Julgamento (MARTIN; WHITE, 2005), atribuindo um peso moral ao escrutínio. A expressão significa a ausência de ordem, lei e respeito no território, associando a aludida falta de proprietário a uma situação em que cada indivíduo faz o que lhe apetece, ou seja, um cenário de total anomia. Estabelece-se, portanto, um expediente avaliativo que atribui um vício ético a toda a sociedade nacional, o qual remete tanto à incapacidade dos brasileiros de construírem instituições normativas funcionais, quanto ao comportamento incivilizado que impera no país perante a falta de tutela político-legal.
O comentário iluminado nos parágrafos anteriores sintetizou uma interpretação do evento noticiado comum a grande parte dos leitores da página do UOL. Outras respostas à postagem, de sentido homólogo à analisada, se acumularam - como podemos observar a seguir:
Os comentários apresentados nas imagens 3, 4 e 5 possuem uma estrutura semântica quase idêntica ao enunciado trazido na imagem 2. Opera-se uma generalização a partir da atitude criminosa cometida pela invasora do capitólio, qualificando tal comportamento como algo comum a todos os brasileiros e representativo do Brasil. Em seguida, os seguidores da página costuram uma comparação entre essa atitude incivilizada, alegadamente comum aos nossos patrícios, e os demais países do globo, em que tal anomia não se faria presente.
Há apenas duas diferenças importantes entre os comentários listados acima e a postagem exposta na imagem 2. A primeira delas é a explicitação do cotejamento avaliativo entre o Brasil e as outras nações. Enquanto no primeiro comentário tal comparação se mostrava implícita; nos demais, encontra-se clara e patente. Tal pontuação tem como resultado a classificação do nosso país como uma nação sui generis, uma espécie de anomalia social que carece de virtudes observáveis em todas as outras plagas do planeta. Estabelece-se, logo, uma generalização acompanhada de uma diferenciação. Por um lado, tudo que remete à brasilidade seria representativo desse espírito de anomia e barbárie flagrado na ação da invasora do capitólio. Por outro, tal fenômeno seria exclusivo de nossa sociedade, marcando uma distinção em sentido de inferioridade entre o Brasil e o mundo. Portanto, estandardização e dicotomização continuam entrelaçadas em tais comentários, porém, nestes, esse enlace incorpora também uma espécie de diferenciação absoluta.
A segunda diferença relevante a ser assinalada é a gradação dos expedientes avaliativos empregados nos comentários exibidos nas imagens 3, 4 e 5 . Enquanto o termo terra de ninguém, apesar de pejorativo, não gozava de um caráter abertamente ofensivo e vulgar, expressões desqualificantes empregadas nos comentários subsequentes promovem um salto qualitativo no peso depreciativo das valorações. Na imagem 3, temos a caracterização do Brasil como a Casa da mãe Joana e um país sem lei. Ambas as expressões perfazem o mesmo sentido axiológico inscrito em terra sem dono, isto é, tecem um Julgamento (MARTIN; WHITE, 2005) de forte gradação acerca da legitimidade e do funcionamento da institucionalidade vigente no brasil e da organização da nossa sociedade. Há, contudo, um incremento no pendor valorativo. Enquanto terra sem dono qualifica a situação de desordem no Brasil de uma maneira metafórica (portanto, sublimada), o sintagma nominal país sem lei constrói uma caracterização de sentido análogo, mas de conteúdo explícito. Com o termo popular Casa da mãe Joana, dispomos novamente de um tropo empregado para descrever um cenário de anomia. Porém, tal expressão possui um caráter de vulgarização, acentuando a imagem de bagunça inscrita em tal aporte avaliativo.
Apesar do aumento na intensidade axiológica patente no comentário da imagem 3, este ainda se furtava a empregar termos de baixo calão e frontalmente ofensivos ao país. Tal pudor desaparece nas respostas seguintes (imagens 4 e 5), em que os termos zona e puteiro são respectivamente utilizados. Inúmeras são as camadas de violenta inferiorização e depreciação inscritas nos qualitativos. Primeiramente, os termos assinalados remetem a espaços de comercialização de práticas sexuais, exprimindo no senso comum não apenas uma ideia de desordem, mas também uma noção de profanação e vulgaridade. Qualifica-se o Brasil, portanto, como uma nação desprovida de ordem e de respeitabilidade, o que marca um salto qualitativo importante na ofensiva axiológica contra o país. Ademais, tais termos associam de maneira intensa dois polos de produção de valoração à luz do Sistema de Avaliatividade.
Evidentemente, a comparação de nossa nação a um ambiente de promiscuidade e anomia produz um Julgamento de caráter moral (MARTIN; WHITE, 2005), incidindo sobre o comportamento do brasileiro e sua sociedade. Além disso, há também um componente estético em tal cotejamento, marcado pela categoria de Apreciação (MARTIN; WHITE, 2005), pois a imagem dos referidos espaços no senso comum remete a um lugar impuro, sujo, feio, insalubre, etc. Logo, há não apenas um juízo de ordem moral em relação ao país, mas também o transbordamento de tal avaliação para o campo da beleza - como se a desordem reinante no Brasil o transformasse também em um lugar repugnante.
Os comentários em resposta à postagem do UOL apresentada na imagem 1, mutatis mutandis, materializaram a ideologia do viralatismo a partir de uma estrutura semântica comum. Operou-se uma estandardização da sociedade brasileira de modo a qualificá-la de forma generalizada como anômica e caótica. Concomitantemente, instaurou-se uma dicotomização de tal retrato depreciativo do Brasil com uma visão idealizadamente positiva das demais nações. Tais expedientes discursivos emergem em liame com uma torrente de aportes avaliativos que não apenas corroboram a dicotomização e a generalização confeccionadas, mas também inscrevem nelas uma violenta carga de desprezo e rejeição em relação ao país. Tais sentimentos se fazem presentes também nos comentários analisados adiante, compostos em resposta à seguinte postagem jornalística (imagem 6), realizada pela página do UOL no Instagram:
Apesar de a notícia não propor qualquer tipo de associação direta entre o Brasil e o produto importado ilegalmente para o nosso país, alguns seguidores do perfil não se contiveram em reproduzir discursivamente a ideologia do viralatismo, se valendo dessa coincidência. Abaixo temos algumas das respostas à postagem que merecem destaque por seu pendor avaliativo:
Os três comentários (imagens 7, 8 e 9) iluminados foram agrupados em destaque por conta de uma série de semelhanças que os aproximam. Cada uma ao seu modo, tais respostas perfazem a mesma estrutura argumentativa e materializam discursivamente a ideologia do viralatismo com o emprego de estratégias análogas.
Primeiramente, os três comentários se valem da imagem metafórica obtida a partir da associação do Brasil com o lixo importado ilegalmente dos EUA. Um ponto que merece sublinhamento é o movimento de sinédoque pragmaticamente operado pela própria manchete apresentada na postagem, sendo o mesmo compartilhado pelos comentadores aqui alumiados. Como a leitura da notícia evidencia, não é o governo brasileiro nem qualquer outro órgão que tenha legitimidade para representar a sociedade nacional que está realizando a importação de resíduos dos Estados Unidos, mas sim uma empresa privada. Ainda que toda a atividade econômica realizada em solo nacional requeira autorização legal (portanto, do Estado), em termos práticos, a responsável pelo empreendimento é um agente de mercado. Portanto, ao construir uma manchete que tem seu enfoque em uma suposta relação de subalternidade geopolítica do Brasil perante os EUA, o veículo jornalístico opera uma sinédoque que toma a parte (uma empresa sediada no país) como o todo (o Brasil em sua totalidade).
Influenciados pelo embaralhamento entre todo-parte patrocinado pelo próprio autor da postagem e da notícia, os comentários apresentados nas imagens 7, 8 e 9 também perfilharam essa mesma figura semântica de sinédoque entre o Brasil e a empresa promotora do empreendimento econômico em tela, responsabilizando a nação pela atividade do grupo privado. Essa responsabilização se torna patente em um dos comentários, em que a relação de dominação exercida pelo EUA sobre o Brasil é representada de uma forma depreciativa perante o segundo, sendo o episódio da importação de lixo mais um retrato dessa submissão: A colônia já não é mais só o quintal. É o aterro sanitário (imagem 8). No comentário exibido na imagem 7, a sinédoque se dá através de uma associação metafórica entre o solo brasileiro e esse empreendimento econômico. Ao classificar toda a extensão territorial nacional como uma lata de lixo, o comentário se vale dessa sobreposição entre parte e todo para construir discursivamente uma imagem intensamente depreciativa do país, qualificando a todos os elementos a ele integrados como lixo.
O comentário exposto na imagem 9 também se vale do mesmo recurso de sinédoque destacado nas respostas anteriores. Contudo, seu enfoque totalizante não é o país de maneira genérica, mas o povo que o constitui: Pensava que foi os brasileiros que foram deportados para o Brasil. Apesar de empregar o mesmo expediente semântico-discursivo, o enunciado em lente se diferencia dos demais pelo fato de a ofensa proferida contra os brasileiros não ter uma vinculação lógica direta com o conteúdo da notícia, mas apenas usar alguns elementos mencionados como um tropo a partir do qual se estabelece uma analogia entre o povo do Brasil e o lixo. Além de uma utilização particular da sinédoque pragmática, a intervenção exposta na imagem 9 também possui mais uma característica singular em relação às demais: o emprego implícito da tática de alienação. Ao qualificar os brasileiros como lixo de uma maneira jocosa, o seguidor da página discretamente se aliena da totalidade humana por ele avaliada. Afinal, a risada produzida no meio do comentário, somada ao próprio sentido de desqualificação da postagem, visam construir uma posição de superioridade em relação à população brasileira, estabelecendo uma diferenciação evidente entre o sujeito que avalia e o objeto avaliado.
Outro ponto em comum aos três comentários é o emprego da estandardização como um meio de generalizar a posição de subserviência perante os EUA como uma característica definidora do país. Ao qualificar a aludida importação de lixo realizada pelo Brasil como um resultado de seu estatuto colonial perante sua metrópole do Norte ou por sua própria natureza similar ao produto importado, estabelece-se uma comparação depreciativa que atribui ao Brasil valor análogo ao lixo. Tal associação se dá de maneiras distintas. No primeiro comentário, temos o Brasil sendo metaforicamente retratado como uma lata de lixo. No segundo, há um argumento de caráter geopolítico, que justifica o uso do território nacional como depósito de resíduos por conta da posição de subserviência brasileira perante os Estados Unidos. Por fim, no terceiro comentário, a generalização desabonadora se dá a partir do enfoque no povo que tem sua identidade vinculada ao Brasil, o qual é comparado de maneira ofensiva ao lixo.
A última tática de materialização discursiva da ideologia do viralatismo patente nos comentários destacados é a dicotomização. Esta se dá a partir da comparação entre o Brasil, associado semanticamente ao lixo importado, e os EUA. Estes aparecem retratados em uma posição de flagrante superioridade em relação à sua contraparte sul-americana. Tal antagonização se dá tanto de maneira implícita, quanto de maneira explícita. No comentário apresentado na imagem 7, essa relação de subalternidade se expressa de forma discreta e indireta. O Brasil torna-se uma lata de lixo pela ação de sua metrópole tácita de descartar seus resíduos em nosso solo. Logo, é a operação de despejo de lixo em território brasileiro, que simboliza metonimicamente a visão que os Estados Unidos nutririam do nosso país, que nos converte em um receptáculo de dejetos alheios.
No apontamento ilustrado na imagem 9, temos novamente a relação de superioridade americana frente à nossa inferioridade representada com discrição. Esta se dá a partir da suposição de que os brasileiros seriam deportados da potência continental como se fossem lixo. Tal visão evidencia uma concepção de viralatismo expressa no campo geopolítico, em que o Brasil se comporta como um capacho estadunidense, tendo seus cidadãos tratados de maneira degradante.
Contudo, é no comentário apresentado na imagem 8 que a dicotomia de poder e soberania entre nossa nação e o vizinho do norte se torna patente, sendo explicitada a partir de dois termos: quintal e aterro. A comentarista caracteriza o evento do despejo de lixo americano em solo brasileiro como um salto qualitativo em nossa submissão ao Império. Enquanto, num primeiro momento, nosso território era tratado como um espaço do exercício de dominação dos EUA (um quintal), após esse agravamento de nossa decadência, simbolizado pela importação de resíduos estrangeiros, nosso solo nacional converte-se em um aterro, ou seja, uma possessão colonial usada para fins insalubres e degradados.
Entrelaçados a essas estratégias discursivas de materialização da ideologia do viralatismo, uma série de expedientes avaliativos são empregados pelos produtores dos comentários analisados, carregando de valor a visão erigida sobre o Brasil em seus textos. Tais aportes valorativos estão ancorados no tropo sugerido pela própria manchete da notícia, que associa o nosso país ao lixo.
No comentário trazido na imagem 7, essa comparação se dá de maneira nítida, através do emprego de uma metáfora: O Brasil é uma lata de lixo. O qualitativo metafórico empregado produz uma avaliação localizada na região semântica da Apreciação (MARTIN; WHITE, 2005), trabalhando com uma imagem altamente depreciativa do Brasil e de todos os elementos e indivíduos ao país integrados. Afinal, uma lata de lixo não é um objeto que desperta repulsa por si própria, mas sim por conter detritos e rejeitos, ou seja, elementos descartados que inspiram nojo. Contudo, apesar de semanticamente o tropo utilizado remeter a uma avaliação negativa de caráter eminentemente estético, esta possui desdobramentos de outra natureza. Ser comparado a um receptáculo de coisas sem valor implica pensar que o Brasil abriga pessoas e instituições desprovidas de utilidade, sendo, portanto, representadas como lixo. Essa representação violentamente desabonadora também possui um caráter moral, construindo uma interface semântica com a região do Julgamento (MARTIN; WHITE, 2005). Assim, estabelece-se uma inter-relação dialética entre os dois campos axiológicos, permitindo que uma valoração estética produza resultados de viés moral e tais desdobramentos reforcem a valoração estética.
O comentário apresentado na imagem 8, apesar de também se valer de expedientes metafóricos, edifica uma avaliação assentada no papel geopolítico desempenhado pelo Brasil em face da potência hegemônica do continente americano. O emprego dos termos quintal e aterro ambiciona assinalar uma relação de subserviência consentida do nosso país perante os EUA, que deságua em duas avaliações morais de caráter abertamente depreciativo. Primeiramente, ser considerado um país submisso remete a uma ideia de debilidade, que obriga o país dominado a se ajoelhar perante a nação dominadora. Porém, a submissão pintada no comentário possui um caráter voluntário. Logo, além da fraqueza, destaca-se a falta de dignidade brasileira, patenteada em sua sujeição ao poder imperialista sem qualquer resistência. Configura-se, portanto, uma rede de valorações negativas cunhadas sob a égide do Julgamento (MARTIN; WHITE, 2005), que possuem o condão de atribuir responsabilidade moral à nação por sua fragilidade e sua sujeição. Nesse sentido, o Brasil não apenas merece ser repudiado por sua posição de sabujo, mas também por sua aceitação de tal relação humilhante. Como pagamento a tal subalternidade, os EUA estariam rebaixando ainda mais nosso estatuto colonial, transformando um território passível de ingerência em um depósito de dejetos indesejados. O comentário iluminado na imagem 8 não apenas desabona o Brasil por tal inferioridade, como também nos culpa pela aceitação voluntária dessa dominação.
Por fim, a resposta à postagem o UOL alumiada na imagem 9 também se apoia na interface avaliativa construída entre as regiões da Apreciação e do Julgamento (MARTIN; WHITE, 2005) a partir da associação metafórica entre os brasileiros e o lixo importado pelo país. Contudo, o comentário promove alguns expedientes de Gradação que merecem destaque. Primeiramente, há um componente de ridicularização no texto, o qual se torna evidente com a introdução do marcador de risada (kkkkk) no enunciado do seguidor do perfil. Esse elemento discursivo implica tanto uma visão intensamente desabonadora dos brasileiros, quanto um esforço de alienação desse grupo, como se o comentarista observasse o tratamento humilhante recebido pelos brasileiros de alguma torre de marfim. Ademais, a insinuação de uma associação automática entre a importação de lixo pelo Brasil e a deportação de brasileiros constrói uma avaliação metafórica que identifica nossos patrícios na aparência e no valor com os resíduos expelidos de seu país pelos estadunidenses.
O quadro geral produzido pelos comentários aqui analisados, que sintetiza com alguma representatividade a média das respostas à postagem do UOL (imagem 6), retrata o Brasil e os brasileiros de uma maneira eminentemente depreciativa, associando-os a imagens degradantes (lixo, aterro) de uma maneira absoluta, enquanto os ridiculariza e os culpa por sua própria situação de miséria e submissão. Dicotomização, estandardização, alienação e sinédoque são empregadas de maneira renitente como estratégias de materialização discursiva da ideologia do viralatismo, com o fito de generalizar as avaliações negativas sobre o país e seu povo e também estabelecer uma comparação com os EUA que coloca nossa nação em evidente situação de inferioridade e sujeição. Essa rede de sentidos é entremeada por uma miríade de expedientes avaliativos, que conferem mais peso e gravidade à imagem produzida acerca do Brasil a partir das premissas do viralatismo.
Finalizado escrutínio discursivo dos veios e descaminhos através dos quais a ideologia que aqui nos interessa se faz presente na seção de comentários de perfis jornalísticos no Instagram, na seção subsequente, são tecidas algumas considerações finais sobre o trabalho analítico ora realizado.
6 Considerações Finais
Timidez de otimismo, submissão voluntária, imperialismo às avessas e apreço maior pelos defeitos alheios que por nossas próprias virtudes. Todos esses atributos pertencem ao brasileiro contaminado pelo complexo de vira-lata, magistralmente delineado por Nelson Rodrigues (2013). Esses traços de personalidade coletiva flagrados intuitivamente pelo dramaturgo recifense formam a base de premissas do viralatismo, que preconiza a inferioridade do Brasil, seu fracasso e o pessimismo em relação ao seu futuro. Tal arcabouço ideológico subjaz parte importante dos discursos veiculados nos organismos hegemônicos de mídia acerca dos problemas patentes na sociedade brasileira, produzindo um modelo interpretativo sobre a realidade nacional imposto como uma gavagem para a grande maioria dos brasileiros. Contamina-se, assim, a percepção geral a respeito das causas para os problemas reais presentes em nosso país, enquanto mina-se a consciência sobre o pertencimento, a autoestima e a identificação do indivíduo com sua nacionalidade, culminando em um sentimento de indiferença perante sua nação. É justamente essa mistura de desencanto e desarraigamento que o viralatismo busca patrocinar no seio da sociedade, tornando a sua dominação e a exploração privada das riquezas nacionais por um pequeno setor oligárquico mais fácil e menos sujeita a qualquer tipo de resistência.
O objetivo que orientou o desenvolvimento deste estudo foi entender de que maneira a ideologia do viralatismo se materializa no discurso comezinho da sociedade, tomando como recorte a seção de comentários de páginas oficiais de veículos de mídia no Instagram. Ao longo da análise empreendida, uma série de expedientes semântico-avaliativos foram flagrados em ação, atuando como meio para a inscrição do viralatismo nos enunciados postos em lente, permitindo que eles produzissem interpretações valorativas sobre o Brasil guiadas pelas premissas dessa ideologia. Alguns entendimentos viabilizados pelo trabalho analítico merecem destaque.
Primeiramente, vale assinalar que, apesar de as postagens comentadas não expressarem a ideologia do viralatismo de maneira deliberada, a seleção das notícias e a própria construção das manchetes apresentadas nas postagens sugeriam esse tipo de interpretação ideologicamente orientada. O exemplo da manchete Importação ilegal de lixo dos EUA para o Brasil ilustra de maneira diáfana tal tendenciosidade. Uma segunda observação necessária vai em sentido contrário: ainda que os grupos midiáticos hegemônicos patrocinem a inseminação da opinião pública com premissas do viralatismo, as formas como os comentadores das postagens instanciaram essa matriz ideológica evidencia uma radicalização de tais premissas, movimento que se mostra ausente nesses veículos jornalísticos. Esse fenômeno não é desconhecido. Guerreiro Ramos (1965), ao analisar a mentalidade dos países colonizados perante o imperialismo, cunhou o conceito de paroquialismo de hipercorreção, que caracteriza a tendência do colonizado de copiar seu colonizador de maneira agravada ao paroxismo, tornando-se exagerado e caricatural. É o que se observa nos dados escrutinados. Há um alinhamento nítido entre a linha editorial dos veículos jornalísticos e a diretriz ideológica das mensagens dos seguidores. Contudo, é perceptível uma radicalização dos argumentos e das premissas entabuladas pelos primeiros na voz dos segundos. Uma investigação sobre as possíveis causas de tal postura de agravamento ideológico pode ser um caminho frutífero de continuidade do estudo aqui apresentado.
O viralatismo serve a múltiplos interesses. Os setores imperialistas sediados nos países dominantes fragilizam as defesas dos contingentes populares à sua penetração, além de serem vistos como portadores de valores oriundos de sociedades mais civilizadas. As oligarquias nacionais também enfraquecem o sentimento de comunhão e identificação com o país, o qual teria o condão de criar embaraços para a exploração por elas realizada de maneira exclusiva das riquezas e recursos pertencentes a toda a população. Por fim, há muitos brasileiros que, apesar de não lograrem qualquer benefício econômico ou político com a disseminação de tal ideologia, encontram nela uma válvula de escape para as mazelas e problemas sociais candentes em nosso país, colocando-se em uma posição de alienação e, por vezes, de superioridade em relação ao restante da coletividade nacional.
Independente dos interesses políticos de momento perfilhados pela ideologia do viralatismo, sua presença simbólica no panorama de ideias brasileiro acompanha a própria história de desenvolvimento do país. Portanto, entender os fundamentos conceituais e premissas fundantes dessa ideologia e seus modos de manifestação discursiva é um dos caminhos mais frutíferos para compreendermos com maior profundidade não apenas a dinâmica de inter-relação entre ideologia e discurso, mas também o nosso próprio país em sua dimensão ideológica - um terreno em perene (re)construção e constante disputa.
Abstract
Main Text
1 Introdução
2 O sentido a serviço do poder: o arcabouço teórico da ideologia
3 O Complexo de Vira-lata como doutrina: a ideologia do viralatismo
4 Sistema de Avaliatividade: uma ferramenta de análise da avaliação na linguagem
5 Análise dos dados: o viralatismo inscrito em comentários de perfis jornalísticos nas redes sociais
6 Considerações Finais








